• |
  • |
  • |

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Churrasco é bom?


5
4
3
2
1
...

Sangue se estende pelas paredes do banheiro. Gritos são escutados no porão. Quer dizer que o trabalho não acabou ainda, seu idiota! - Pensa Billy, o aleijado, embora odeie esse apelido.
Olhos de garotinhos estão fixados atrás de grades, esperando para ver quem iria ser o próximo. Havia duas equipes de moleques entre dez e quinze anos, enjaulados em dois cubos metálicos deixando-os sofrendo ainda mais por estarem agachados lá dentro, e separados, sustancialmente na diagonal.
Quadros de Patty the Loadcrz estampavam o quarto com cheiro de mofo e óleo mecânico, junto com peças de carros abandonadas e cabeças de porco empalhadas. O homem era o Freddie Kruger da vida real.
- Como vamos sair daqui, James? - Perguntou Tommy, com seu cabelo de cuia loiro sobre os olhos e contendo choro, - Como raios vamos sair daqui? - o choro veio.
- Fique quieto, Tommy, fique quieto. - Disse James com sua voz o mais paterna que conseguia. Apesar de serem irmãos.
- Crianças - Diz Billy, alegremente. - eu participo de um projeto social para acabar com a fome na África, e vocês - ele aponta para os garotos, por um momento fingindo esquecer o fato de que estava coberto de sangue e todos estavam assustado com a faca que pairava em uma das mãos - Vocês, sim, vocês, que vão ajudar de bom grado amigos que estão com fome, irmãos, pensem nisso, - ele acentuou bem essa parte - IRMÃOS!!!
Botou o a faca entre a cintura com a barriga gorda.
- Isso é para diminuir nosso medo? - toma a frente, James.
- Então temos um lobo zangado aqui no meio?
Ele puxa a faca, como um gângster saca um estilete.
James se retrai. Fica escondido no fundo da jaula, de cócoras.
- Não. Não, não. Você é só um maldito carneirinho. - Esconde a faca novamente, fazendo-a se perder no meio de banha e suor e panos, na cintura.
Kennan é um garoto negro que foi sequestrado do lado pobre do Brooklyn, um garotinho gordo que usava uma bandana do Run Dmc e tinha uma voz fina como a de uma garota de nove anos.
- O que temos aqui? - Alarga os olhos, Billy. - Uma obra de arte de último nível. - Kennan olha no fundo dos seus olhos e percebe que ele não está brincando. O pé esquerdo começa chacoalhando em um ataque de ansiedade que não tinha desde os 8, há 4 anos antes. E o gaguejo que sua fonoaudióloga tinha resolvido há dois e meio, voltou a toda pressão.
- Fi-fi-if-fi-fiiiffiiqififiiq - ele puxa o ar com a boca, como se em último suspiro - Fique bem lon-gede mim!
- Conseguem ver garotos? Vocês só comem porcaria, mas este aqui, este sabe o que é passar fome e come o que tiver e em grandes quantidades. Ou seja. - Ele dá uma virada, fitando todos os demais participantes, digna de um Oscar de melhor atuação, senão fosse uma cena de terror. - Este aqui é uma obra de arte. - Interessante como obra de arte soou tão fina e patética que poderia ter sido dito por um garoto de três anos relatando uma palavra nova que aprendeu em um desenho animado.
Billy abre a parte superior da jaula, com cuidado, porque ratos trâmites não davam folga.
- Venha cá seu monte de banha! - diz, com a mão tentando puxar Kennan pelos cabelos, mas alcançando a bandana. - Ora seu moleque de merda!
Kennan olha para a escada. Ele pensa: Scott Pilgrim contra o mundo, eu contra a escada. - E corre em direção a ela sem olhar para trás. Toda a platéia de garotos o encoraja. Vai Kennan! Vai negrinho bão! tinha pessoas do interior e de toda as demais partes de Rust Hill lá. Vai seu negro fodido!
E ele foi.
Mas... Deus dá e Deus tira, pensou Billy e começou a rir como uma bruxa, com as mãos no estômago gordo ele realmente parecia uma.
Um botão escondido na palma da mão, selou a porta metálica no alto da escada. E em ataque histérico Kennan esmurrou o portão e esperneou, gritando, e chorando. A luz que estava a frente dele foi fechada, exterminando sua esperança.
Deixe-o ir Billy, aleijado! Deixe-o ir Billy aleijado!
E todos juntos.
Aleijado! Aleijado!Aleijado!
A fúria não podia ter sido maior. A faca que estava na cintura foi apertada pelo cabo, aço inox sendo amassado (difícil acreditar não, é?) com toda a força do punho direito de Billy. Os dentes rangiam e momentaneamente os gritos foram cessando, era como se estivessem assistindo um cinema mudo de Charles Chaplin de repente. Billy puxou o braço para trás. A perna mancou em luto. O músculo do braço rígido ficou, crescentemente. E ele arremessou a faca.
Não era comum e nem permitido fazer isso na frente das crianças, sua mãe dizia que a carne com medo ficava menos saborosa, e ele resolveu, nesse exato momento, testar isso na prática.
O som estrepitado do crânio sendo perfurado com uma faca de aço inox, foi o mesmo que rasgar uma lista telefônica de uma só vez. E a chuva parecia de irrigação. O garoto a princípio não morreu; foi cambaleando a escada, um degrau por vez, e parecendo que metade do corpo de cima estava desconectado com a metade debaixo, ainda vívida. Até que, aparentemente, o cérebro se deu conta da cena, mapeou onde iria cair, por favor bem pertinho de mim, pensou Billy, e caiu, exatamente perto dele. Os olhos revirados. O irrigador de sangue no buraco na cabeça, ainda jorrando litros. Os garotos, aqueles que ainda tinham sonho com papai noel e fada do dente, boquiabertos e em silêncio fúnebre. Apenas o som de Zzz sendo arrastado do jorrador de sangue.

No outro dia. Na África.

Billy estava com um avental e um engradado atrás dele cheio de carne. Uma churrasqueira ligada e centenas de criancinhas fazendo fila para comer o Churrasco do Tio Billy. O melhor e mais gostoso, ele costumava ensinar o lema para os pequenos.
- Esse é o último churrasco, Johhny-dunkie-dooguie - Disse Billy, fazendo piada com o garotinho.
- Mas e o resto dos meus amigos, tio Billy? - perguntou, com as sobrancelhas baixas, triste.
- Não, amiguinho, este é o último desse engradado - Ele pousa a mão em cima de um dos vinte engradados, este agora vazio. - Ainda há mais dezenove caixas do tio Billy para tostar.
O garoto sorri indo embora, saltando e mostrando para o resto dos garotos o seu prêmio que esperou tão pacientemente para ter.
Depois do serviço, Billy dá uma mordidinha no seu churrasco.
- Parece que carne medrosa a deixa mais maleável nos dentes, e mais macia com um toque de vinho. Mamãe é uma velha louca. Ele ri, novamente, como uma bruxa. Mamãe é uma maldita velha louca.



Churrasco é bom!!!!!
:D :D :D :D :D :D :D

segunda-feira, 4 de abril de 2016

O Grandioso Circo Mystic Heaven - Parte 1/2.



Onde o vento sopra mais alto na mente ignorante de pessoas com egos igualmente proporcionais, adentrado o desespero. Bem, eu estive lá. Sozinho? - (não sei ao certo). - Com medo? - (a palavra certa seria realmente essa?) Independente desses sentimentos frágeis, sentimentos humanos, eu estive lá. Nos fazem fracos, mas com o passar do tempo nos fazem forte, correto? - Teoria de crescimento interno, aprendi essa com meu psicólogo. Mas de qualquer forma é outra mentira que pago para ouvir, apenas para diminuir o fato ou fingir dissipar aquelas lembranças como se nunca houvessem acontecido! Eu tenho lembranças duras, sabia? Mas tudo bem, ficará sabendo agora. 

Não é um fim de ano em uma casa de veraneio, bebendo e dançando como jovens malucos que sempre acabam trabalhando em um emprego horrível e se tornando uma pessoa desprezível que corre atrás de um passado que nunca existiu, (mas poderia ter existido se não fossem tão ingenuamente ignorantes propositalmente). Justificando erros sobre erros, conhecedores da vida ou filósofos desse tempo, que julgam como se fossem os juízes, mas que na verdade, como Stephen King informalmente iria dizer em uma de suas novelas literais;"Eles não sabem de caralho nenhum".

Duro, porém Realidade. A verdade dói, amigo, aprenda a caminhar ao lado da dor e trilhará o caminho da verdade (outra coisa de meu psicólogo que herdei, e haverá muito mais daqui pra frente).

Continuando, agora para começar de fato:

Longe de suas bebedeiras. Longe de suas festas medíocres, pastando um solo de gramado com algumas tumbas e algumas flores espalhadas no chão, algumas desgastadas e semi-mortas. Longe, Apenas longe. Fora de tudo isso. Há uma instalação móvel grandiosa, uma das quais seus pesadelos se tornam realidade. Uma da qual você não quer ousar pensar, e mesmo se tiver essa braveza, ficará louco muito antes de chegar a uma resposta particularmente razoável.
Gritos agudos, mais fortes e mais entonados do que os de Rob Halford - gritos de medo.
E se isso te lembrou The Great Gig In The Sky, esquece, também passam longe por que não foram fingidos e sim verdadeiros.
É lá, o núcleo de seus pesadelos, é onde eles se tornam reais.
Os grilhões arrastam no chão trazendo seu pensamento consigo e diferindo-o na parede de tijolos que circundam a casa. Construção ou demolição? Como demolir algo que se restaurará em breve?
Se não me engano, a Hidra, monstro mitológico, quando se cortavam uma de suas cabeças, outras duas nasciam no lugar. Posso garantir que a história que contarei é semelhante.

Acredite ou não, há residentes lá. Dos quais me lembro bem. Aqueles de terno e gravata com rostos fundos e olhares desnutridos. 
Sempre sabem quando alguém irá chegar; eles adivinham. Semanas de antecedência eles preparam tudo para que a Mystic Heaven - permaneça perfeita, e superficialmente falando, apenas para engana-lo dentro do buraco mais sujo que esse mundo possa ter. 
Pessoas costumam ir a circos e para quê? se divertir é claro, essa seria a resposta mais óbvia. Mas me recordo bem de ignorar mágicos nas ruas por quê sempre chamei de enganação barata, nunca acreditei em magia, portanto é duro para mim agora dizer isso, 

Aquilo não foi mágica, foi na verdade, (e teve um fundo de agonia também) - Real. 

Com todos aqueles ossos abaixo de mim, eu conseguia escutar as vozes de todos eles que já caíram naquela armadilha. Uma trapaça mental tão inocente quanto a frase: "Escolha sua carta e mostre a todos, menos a mim. Eu não posso saber qual carta você escolheu". Então... Minutos depois ele acerta. Minutos depois você afunda dentro de um poço de ossos e olhos negros das almas que já foram perdidas em um simples truque de mágica. E por quê? Como eu disse, amigo, ignorância. Você tinha a vitória dentro das suas mãos, mas num passe de mágica tudo é virado contra você, e a aposta que você fez, é apenas, sua própria morte.
Me diga, como eu poderei ir adiante sem antes eu te contar tudo? Não se preocupe, são apenas fatos necessários. 
Aquela paisagem sobrenatural que me refiro está longe de ser um filme thrash dos anos 60. 
Apenas...

O corvo gritando, os trompetes ressoando no ar, as cabines acendendo sua luz, as barraquinhas de comida começam a funcionar com todos aqueles cachorros quentes e algodões girando no palito finitamente esperando apenas um olho maravilhado pedir dinheiro para um dos pais para comprar. Tudo está pronto novamente para mais um show fantástico.

Então a cortina se abre de vez por mais uma noite, e revela:


O Show mais emocionante e mágico da vida de vocês.

Caso contrário o seu dinheiro de volta, mas esqueça isso, vai ser incrível.

Ass: O diretor.





Mystic Heaven






1969, 10 de Dezembro, eu ainda sabia dançar. (Bird is word)
¹Você não conhece sobre o pássaro não é? 




Eu andava com meu blazer (conjunto) de uma peça de roupa que paguei caro, apenas para ficar parecido com Robert Johnson² - O orgulho da nossa raça naquela época.
O cara podia ser quem fosse mas conseguia tocar tão bem quanto um anjo toca uma trombeta, nunca ouvi um anjo mas ouvi Robert Johnson e acho que ele se assemelha a um. A ideia de ter um negro tocando sobre "vender a alma para o demônio por ser um sujeito pobre em busca de fama e sucesso financeiro imediato " me fazia pensar que: eu estava na mesma merda, ou pior, ou melhor por ter um par de sapatos (um belo par, então isso me faz meio humano, não é?), ou seja: Se aquela mesma oportunidade surgisse, eu a agarraria e viveria como se fosse meu último dia na Terra.
De qualquer forma se houvesse uma chance de trocar minha alma para conseguir ao menos um pão com manteiga da Summers (restaurante chique da época, e que agora se tornou uma marca de restaurantes mundialmente famosos), eu o faria (apenas para você ter uma noção de como eu não estava brincando. O mundo era uma merda, mas falaram que é das merdas que surgem moscas ou da merda que se há sucesso, hoje em dia é provado isso, mas enfim... deixa pra lá).
Era meio louco pensar isso, saca? (eu não usarei isso novamente,"saca" não faz parte do meu vocabulário há quase 38 anos. Falei para me enturmar, é assim que jovens que tem a idade que eu tinha falam hoje em dia, saca? - Chega por hoje.) Mas se é louco pensar, você não deve opinar contra um jovem de 21 anos daquela época, onde o preconceito reinava como chicotes em nossas costas e era preciso apenas um olhar de um "senhorzín" (brancos) para fazer-nos tremer na base. Sendo negro você é ladrão, sendo negro você é culpado por que a sinhazinha (brancas) derrubou as compras por ser desastrada, você é também o cesto de lixo alternativo que eles usam quando não tem nenhum por perto. Jogam o lixo em cima da gente mesmo. Independente do que ele seja.
 Um dia um homem me bateu na rua com um porrete velho que estava metade no esgoto e metade na calçada da viela, porrete que me provocou dor e ainda sujou minha blusa branca, e se tentasse adivinhar por quê, então sua resposta passaria longe de ser:
- Apenas para impressionar as mulheres da época, como posso dizer no vocabulário atual, "dando uma de machão", e então, você acertou?
Isso tem algum sentido?
Mas aquilo teve volta, ah mas teve sim.
Peguei o porrete do senhorzin e ataquei na cabeça, enquanto estava inconsciente eu mijei na sua cara. Fiquei feliz uma semana. E então ele descobriu por causa da velha Jane, ela havia visto a cena e esperou ele passar na rua novamente para contar. E assim que eu fugi da cidade e vim parar aqui em Rotten Cost "West"(atualmente há a "South" e a  "wembeley one" também). Ainda moro aqui, tenho família, já tenho netos também, aqueles que passam o dia em casa diante de computadores e aparelhos telefônicos deus sabe-fazendo-o-quê, e nesse momento na Tv de tela plana (eu cresci na vida) está passando as eleições presidenciais e se o cara negro ganhar, ele será o primeiro presidente negro dos Estados Unidos.

Agora eu posso ser formal? Passei 4 anos no mestrado de letras, e já está na hora de abandonar aquele vocabulário que diariamente eu vou considerando ainda mais imundo.

- Minhas condolências ao senhor que devolvi na mesma moeda seus atos grotescos contra mim. Eu poderia ter deixado barato, mas eu o fiz. Sua maneira de morrer fora bem mais cruel do que seus atos e os meus juntos. 
Ou seja...

E antes que pergunte: 
Eu não o matei. Digamos que... Um triturador de resíduos de pia tirou o dia de folga para brincar de sacolejar ossos e fazer uma bela chuva de "suco-de-morango bem fresco" durante um jantar especial com os filhos do "senhorzin".
Alguém tentou consertar algo que estava ligado, apenas estava com um ossinho preso que não fazia as lâminas girarem. Então... Agora não era um ossinho só, não é?
Por conta dos detalhes básicos serem pesados demais para esta história (vai haver detalhes surreais mas não quero começar aqui) eu irei abandonar esta memória de vez por ora, considerando que a chuva vermelha fez aquela casa que ele morava ficar inabitável com moscas rodeando aquelas manchas até hoje. (Eu tentei comprá-la, e coincidentemente esta casa fica uma rua atrás da minha).
Levando em consideração tudo isso:

3 segundos de silêncio para ele.



- Agora a história começa... ainda dá tempo de se arrepender e esquecer de tudo que leu e voltar para suas novelas caseiras matutinas ou tardias.



(Isso foi apenas um breve aviso)






Emilly Saint Jo:

Eu conheci o cinema de Denterson Forbes e conheci aquela rua também - A rua Emilly exalava o perfume de flores de primavera, lá não havia preconceito, e me tratavam como um verdadeiro irmão. Somente naquela rua. As demais eram repletas de policiais que criticavam você e apontavam o dedo diretamente em seu rosto esperando uma reação, e para quê? Somente para fazê-lo ser preso por agressão a autoridade, eu nunca reagi, mas vi alguns companheiros surrarem o policial até fazerem uma bela poça de sangue afundada em amassados faciais e que até os dias atuais estão morfando na cadeia, e outros foram executados na cadeira elétrica. Com direito a platéia e música clássica, bebidas também, e risadas - Aquela cidade é brutal, se me permite dizer:
até hoje ela continua a ser, parcialmente talvez. - uma forma maluca de comemorar a morte de alguém; eu acho.
Mas me diga que sou maluco e isso é mentira.
Por favor, me diga.
Preciso ouvir para me sentir humano novamente.
*Risadas histericamente conturbadas e insanas, metade a metade.*
Pelo menos por enquanto.
(metade a metade) - Você logo entenderá essa frase.




1970, 24 de março. -
 Noite gelada e ventos assobiantes. E de céu infinitamente estrelado.




Eu chutava latas pela rua Rotten Hill em meados anos 70. Eu trabalhava na fábrica de algodões do Sr. Merlbournes, e meus bolsos estavam ao menos cheios (de algodões, não, era um pouco de "din-din" mesmo) de dinheiro fofo, uma quantia que você usa hoje para comprar balas em algum mercado e não consegue se satisfazer, mas que antigamente era usado para comprar uma imensidão de itens que dava para todo o mês.
e se me permitir a intromissão uma vez mais; Era algo bom.
Eu quase me esqueci deste detalhe inútil: Eles não dançavam Surfin' bird mais, aquela dança se tornou estranha e ultrapassada, começava a era dos hippies mas eu ainda sabia dançar. E dançava escondido, aquele hit jamais morreu pra mim.

-

A estrada estava escura, iluminação baixa de postes com lâmpadas singulares faziam um cenário estranho e nada agradável, já passava da meia noite e isso piorava ainda mais as coisas. Louis Raterball me olhou e fez um gesto com a mão esquerda chamando-me, e no outro lado da rua, suas dezenas de pulseiras no braço fizeram um som semelhante a de um sino. Talvez ela tivesse descendência cigana, algo que nunca perguntei. Naquele clima, aquelas pulseiras, pareciam o tintilar dos sininhos das renas do papai noel. Eu tinha muita imaginação antes (deve ter percebido), hoje em dia perdi uma boa parte.
- Venha cá, Braw! Tenho uma surpresa para você. - Eu apressei meu passo e a medida que eu chegava mais perto, o contraste da luz do bar sob a lona da qual ela estava debaixo revelava um papel dourado e iluminado.
- O que há para mim? - Questionei-a, com as mãos fora dos bolsos da calça social, levando o blazer as costas em uma posição que ele não podia cair, em cima do ombro.
Ela finalmente estende sua mão - Ela segurava na outra mão um ingresso para ir à um circo local.
- RusszMeyer's show? - Cocei a cabeça por cima do chapéu de Camocim-preto.
- Dizem que são bons na arte da comédia, dança - ela fez um pequeno movimento com as duas mãos, como se ensaboasse as costelas - expressando - Misticismo - Ela levou um das mãos ao rosto, ocultando parte dele. - E falam também que a magia - ela remexeu todos os dedos da mão - É o melhor de tudo, alertam para os forasteiros que depois de todas as atrações, nunca se deve perder o Grand Finale com o maior mágico do mundo. E isso veio de bônus embrulhado no maço de notas de dez que recebi de pagamento. Como pode ver o clima aqui está baixo e eu preciso trabalhar dobrado para arcar com as despesas do mês. - Ela estendeu a mão apontando bar adentro, e eu realmente percebi que o fluxo estava abaixo do que eu costumava ver por ali. Tentei fazer uma piadinha sobre mostrar os seios para aumentar a clientela, mas ela somente riu e interrompeu o que viria a seguir com um tapinha no meu ombro.
- Por quê não vende o ingresso, certamente por "falarem que eles são tão bons assim" - fiz aspas com os dedos indicadores e médios, afagando o ar. - irão pagar uma boa ponta, e aqui diz: Premium ways. - Eu observei o ingresso buscando os dados sobre a data e horário, e fui surpreendido com o que achei, era para o próximo dia às sete. Quando o Sol começa a dizer adeus e os coelhos operários entram para em suas tocas. - Era uma frase da cidade, eu me lembro bem.
- Isso é caro, é chique demais. Certamente vai ganhar uma ponta - ( se referia a "ganhar uma ponta" como muito dinheiro, uma quantia minúscula atualmente. ) - Algum ricaço branco pode querer comprar, e de acordo com a urgência, você pode ganhar bem mais do que o próprio valor. - Estiquei a mão de volta a ela. Entregando-a novamente. Ela recusou com um aceno superficial.
- Observe o clima do bar de novo. - Eu já sabia como estava, mas mesmo assim obedeci. - Eu tenho cara de quem tem tempo para estender o vestido e mostrar minhas belas pernas - ela o fez, mostrando para mim como seria - para atrair homens e implorar para eles que compre um simples ingresso? - Aquilo me pareceu uma pergunta retórica, mas naquela época eu sequer sabia o que era isso. - Absolutamente não! Você sabe disso. Está aqui há pouco tempo, apesar de ser novato supera os outros daqui que não conhecem a rotina de uma mulher trabalhadora. - Ela fez um legal orgulhoso com a mão e levou o polegar até o nariz, esfregando-o como Bruce Lee fazia em seus filmes.
Eu entendi a razão daquele aceno superficial pelo o que veio a seguir:
- Eu entendo que você trabalha muito. - o que me fazia questionar-se a razão de ela estar quase uma da manhã parada na entrada de seu bar, se eu a visse com um cigarro, seria aceitável. Mas não vi. O que vi foi um rosto atento a ambos os lados da rua pouco iluminada, um rosto preocupado em certos pontos da rua que se mantinham ocultos na escuridão completa. Você não poderia dar um chute no que tinha ali, em quem ou no quê estavam escondidos ali.
- Braw. Pode levar não quero dinheiro. Apenas leve! - ela empurrou o ar na minha frente com as mãos em forma de concha, recusando. Mas ela me conhecia. Mesmo eu sendo "principiante no jogo", e nisso eu quero dizer ser novato na cidade, não me fazia um cara amigável e a ideia que tinham sobre mim eram a de que eu poderia ser algum ladrãozinho barato, mas Louis Ratterball sabia que eu pagaria e agora eu me sinto um mágico profissional sendo enganado pelo melhor palhaço do circo.
Ela estendeu o vestido revelando suas coxas grossas embrulhadas no meia-calça. Olhou para ambos os lados e para trás, certificando-se de que estávamos sozinhos ou ocultos por ora para tentar fazer o que hoje chamo de "Jogada-mestra":
- Eu recuso dinheiro, mas quem sabe você não fica me devendo algo, mocinho? - Louis sussurrou em meu ouvido, e eu senti o cheiro de seus cabelos loiros e eram de uma fragrância suave e lembrava-me muito o cheiro dos morangos.
Algo cresceu por dentro da minha calça social e eu já sentia arrepios na nuca.
- S-Sim - gaguejei por conta da mão boba alisando ²"você-sabe-quem". - O q-qu-e quiser.
- Que tal passar um tempo aqui, até amanhã de manhã? Poderá beber. E pedirei um único favor depois... - Ela diminuiu a tonalidade de sua voz - mas terá que pagar, meu bem.
- S-Sim. - Disse, não me importando com a urgência que aquele favor iria ser.
Ela baixou o vestido novamente, esticando-o e o amaciando com as mãos, ajeitando-o novamente.
Eu senti algo úmido na cueca, mas evitei alertá-la e hoje sei que fiz certo.
Me puxou pela gola da blusa branca e carregou-me até a cadeira onde sentei e comecei uma conversa com suas irmãs, não tão bonitas quando ela mas ainda sim mais bonitas que eu, e quando me dei conta já era 4:50 da manhã e garrafas de uísques e múltiplos copos grandes de cervejas estavam espalhados por toda a mesa. E parte das garotas estavam desaparecidas sem eu ter ao menos percebido seu sumiço e as que restavam estavam conversando entre si e me excluindo de grande parte do assunto, então eu percebi que o me deixava com cara de palhaço era que:
- Eu não bebo e ligeiramente fui enganado.
Também eu (uma forma de dizer bom faturamento) dei lucro ao bar. Dei mais do que tinha. Essa era uma tática de não afundar no bar, primeira regra dos negócios (em lugares sujos da cidade, claro) não vai à falência quem ainda tem dinheiro, mesmo que este não esteja em suas mãos, ou seja, quando alguém te deve. Agora entendeu por que ela recusou o ingresso?
O que me derrubou mesmo foram as conversas sobre sutiãs, calcinhas e experiências sexuais fantásticas, que para mim de 21 anos que nunca havia visto mais do que uma coxa grossa por dentro de uma meia-calça em toda minha vida (eu digo de vinte e cinco para trás), eram o mesmo que entrar em uma história de prazer eterno e fantasias sórdidas inimagináveis. Algo na minha calça crescia em momentos mais quentes e permanecia de pé (esperando) em momentos que eu chamo de "só conversa fiada sem ação". Eu dormi no quarto que ficava no primeiro andar do bar e por conta das poucas pessoas, ainda haviam muitos quartos disponíveis.

No outro dia, exatamente ao meio dia. Paguei meu quarto e o outro quarto, para onde garotas desaparecidas fogem para aumentar ainda mais a renda do bar. Logo após olhei meus bolsos. Aquele dinheiro para-todo-o-mês havia desaparecido completamente.
E algo me dizia duas coisas:
No próximo mês metade da grana iria desaparecer também (ela sabia disso),
e eu continuaria sem beber até os dias de hoje. (e cumpri).

E também ainda devia aquele favor a ela. (Por enquanto).



Permutando meus sapatos caros por uma nova quantia de dinheiro considerável, eu passei a usar um par mais vagabundo e também da cor preta, mas pelo menos eu ainda conseguia passar o mês. Isso se eu não voltasse mais naquele bar, algo que eu não iria fazer de maneira nenhuma.
Havia uma coisa que eu tinha esquecido, e quando voltei para o quarto alugado da pensão Pennywolf, eu encontrei. Ao lavar meu blazer com um sabonete, do qual era oferecido pelo serviço de quarto da pensão, e fui revirá-lo do avesso algo caiu do bolso e flutuou no vento, fazendo o desenho de barco no ar até finalmente cair no chão.
- Pura sorte, eu quase o perco. - Pensei consigo e guardei no bolso, mas desta vez no da calça.
Revirei minhas malas com roupas e troquei apenas a blusa e o próprio blazer, enquanto dependurava o outro para secar na janela. Almocei no refeitório da pensão mesmo, não era nada sofisticado mas eu ainda podia levar o prato para comer no quarto. E perto do corredor que dá direto para os quartos, eu vi uma estante de revistas e uma delas me chamou muito a atenção, uma coincidência agradável e cara, devo admitir:
- Nove e noventa e cinco por um guia de shows na cidade desse mês. Se eu não tivesse tão interessado assim e sem lugar para onde ir, então com certeza eu não ia pagar essa quantia toda. - E não ia mesmo. Mas aquele mágico de luvas brancas e bigode fino esticado para os lados como o de Charles Chaplin (porém bem mais finos e esticados sofisticamente) e uma cartola semelhante a dele também, tudo me impressionou muito e de maneira instantânea. Parecia que eu estava preso a um fio de mágica que levava diretamente ao olhar daquele homem, dentro daquela imagem, em um fundo preto e branco, meus olhos davam cor a imagem. Cores que nunca mais vi igual na minha vida (nisso eu posso dizer - Até hoje).
Para um jovem de vinte e um, aquilo era um paraíso de fantasia. aludindo o desconhecido. Um dia o homem disse que as melhores coisas eram as coisas desconhecidas. Essa frase era fantástica pra mim. Eu não sabia ainda (claro),
mas igualmente seria o seu show.

Com o prato em mãos e tentando atrapalhadamente equilibrar o prato e em um espaço que deixei reservado, afastando todo o alimento, o copo. E logo abaixo do braço a revista e na outra mão a chave do quarto.
Eu abri a porta e fechei-a levemente com as costas, empurrando devagar para não desequilibrar tudo e quebrar o que não tinha dinheiro para cobrir. Deitei na cama e deixei o suco na janela, nunca o tomo até terminar o alimento (até hoje).
Abri a revista e o conteúdo era surpreendente, me dá calafrios lembrar de tudo agora. A cada garfada, a cada revirada de página, a cada palavra, a cada detalhe contado de maneira expressiva, truques e mais truques, as perguntas iam surgindo: Como ele fez? Esse cara é de outro mundo? É verdade? É apenas truque? Há dois objetos? É fantástico... Tudo é. Tudo deve ser.
Viro a cabeça em 180° graus a direita.
Alguém bate a porta, e algo me diz que não foi a primeira vez.

Olhei atentamente a sombra por baixo da porta, de onde eu estava deitado (eu comia assim na época, lendo algo. Constantemente era o jornal). A sombra dançava e logo outra massa escura se juntava a ela e pequenos grunhidos iam se tornando uma frase legivelmente audível, e as batidas na porta iam aumentando compulsivamente ao longo dessas frases.
- Há aí? guem? al aí? Há alguém aí? - Eu achei que fosse a própria porta falando comigo, não era de se estranhar já que na porta estava estampado o mapa da pensão e acima o olho mágico, ou seja, parecia um ciclope ou alguém com um tipo de deficiência visual que tinha um mono-olho.
Me apressei.
Puxei a maçaneta, ainda avulso, eu hesitei quando vi bem quem era.
- Não pude deixar de ver que pegou uma revista no corredor, então do troco do almoço eu tomei a liberdade para retirar o valor da revista.
Eu pensei comigo: "Mas o troco, eu o tenho no meu bolso."
- Sim, eu agradeço. - Eu estendi a mão, mas ele se adiantou e guardou no bolso da minha camisa e apenas piscou, selando uma única frase.
- Cuide bem de seu Dinheiro Braw. - O cara que vestia um suéter com um colete por cima se virou e foi embora pelo corredor, e meus olhos acompanharam apenas com uma pergunta. "Como ele sabe meu nome?"
Pensei muito naquilo quando voltei para terminar a comida do prato. Algo em mim dizia que ele podia muito bem ter pego a minha ficha na recepção e ter olhado lá, escrito de maneira torta (como escrevo), James Silvery Brawtingumn.
Mas algo rejeitava a ideia e criara uma espécie de nevoeiro místico em uma atmosfera que falara bem que aquele sorriso em companhia da piscada, eram por si só bastante familiar.

Depois que acabei de ler tudo e também de me fascinar pelas referências que aquele circo tinha ou na verdade não tinha: Pois eu nunca ouvi falar de uma empresa mundialmente conhecida que se chama Circus's show RnG. Ou uma empresa também mundialmente famosa que se chama Ruffus Know. Ambas as referências citadas eram sobre uma avaliação que enquadrava o circo em um dos melhores do mundo, deixando-o na classificação de nove de dez, e tinha notas de apresentações artísticas que taxavam 9.8/10, e isso ficava à frente do Circo de soleil. Bem, quando de fato terminei tudo, até as paranoias que me deixavam a mercê de decidir ir ou não ao circo, eu percebi repentinamente que minha noção de tempo havia sido burlada.
Os ponteiros do relógio de girassol estampado na parede quase que saltavam, ambos, do ponteiro 6.
Eu tinha 10 minutos para decidir ir ou não, já que levando em consideração que a avenida de Rotten north era a mais rápida e me dava 30 minutos de passadas suaves ou 20 de uma bela caminhada apressada. Era apenas 10 minutos entre o talvez e o não.
Eu olhei uma última vez no espelho e através dele, revirada na cama, eu vejo aquela revista. O sorriso misterioso implantado com as duas mãos dentro da cartola, e uma névoa mística saindo de lá. Aquele bigode sofisticado e aquele olhar... aquele olhar elegante e ao mesmo tempo místico, pertencentes à RusszMeyer - El mago. Ele pareceu falar comigo, e eu vi, eu senti... que ele me chamava, e distraidamente eu disse sim para o espelho.
Então eu fui.







Continua
 ...










Referências:
1.¹, Piadinha feita com a frase inicial da canção "Surfin Bird" da banda The Trashmen. "Todo mundo sabe que o pássaro é a palavra", tradução. Via: https://pt.wikipedia.org/wiki/The_Trashmen e https://www.letras.mus.br/the-trashmen/399910/traducao.html .
2.², Robert Leroy Johnson, guitarrista e cantor norte-americano de blues. Cujo há uma lenda sobre ter vendido a alma para o demônio em um encruzilhada. Via: https://pt.wikipedia.org/wiki/Robert_Johnson ;  


Reclamações, tratar com:

Johnny O.Brian, o maqueiro.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

O fantasma






― Vim porque desejo contar-lhe minha história ― disse o homem deitado no sofá do Dr. Harper. 

O homem era Lester Billings, de Waterbury, Connecticut. De acordo com os dados anotados pela Enfermeira Vickers, tinha vinte e oito anos de idade, era empregado de uma firma industrial em Nova York, divorciado e pai de três filhos. Todos falecidos. ― Não posso procurar um padre porque não sou católico. Não posso procurar um advogado porque não tenho motivo algum para contratar um advogado. Tudo que fiz foi matar meus filhos. Um de cada vez. Matei-os todos. O Dr. Harper ligou o gravador. Billings estava deitado reto como uma vara no sofá, sem relaxar um único centímetro do corpo. Seus pés sobravam rigidamente sobre a beirada. A figura de um homem suportando uma humilhação necessária. Tinha as mãos cruzadas sobre o peito, como um cadáver. O rosto estava cuidadosamente composto. Fitava o teto liso e branco como se visse cenas e quadros projetados nele. ― Quer dizer que realmente os matou, ou... ― Não ― um leve gesto impaciente com a mão. ― Mas fui responsável. Denny em 1967. Shirl em 1971.E Andy este ano. Quero lhe contar tudo a respeito. O Dr. Harper permaneceu calado. Achava que Billings parecia abatido e envelhecido. Os cabelos ralos, a pele descorada. Os olhos continham todos os miseráveis segredos do uísque. ― Foram assassinados, entende? Só que ninguém acredita nisso. Se acreditassem, tudo estaria bem. ― Por quê? ― Porque... Billings interrompeu-se e se ergueu nos cotovelos, olhando através da sala. ― O que é aquilo? ― perguntou rispidamente, os olhos apertando-se até serem meras fendas entre as pálpebras. ― O quê? ― Aquela porta? ― O armário embutido ― disse o Dr. Harper. ― Onde penduro o sobretudo e guardo as galochas. ― Abra. Quero ver. O Dr. Harper levantou-se sem uma só palavra, atravessou a sala e abriu o armário. Lá dentro, um sobretudo castanho-amarelado pendurado num dos quatro ou cinco cabides. Embaixo dele, um par de galochas brilhantes. O The New York Times fora cuidadosamente enfiado numa delas. Nada mais. ― Tudo bem? ― indagou o Dr. Harper. ― Tudo bem ― replicou Billings, deixando de apoiar-se nos cotovelos e voltando à posição anterior. ― Você estava dizendo ― disse o Dr. Harper enquanto regressava à poltrona ― que se o assassinato de seus três filhos pudesse ser comprovado, todos os seus problemas cessariam. Por quê? ― Eu iria para a cadeia ― replicou Billings de imediato. ― Pelo resto da vida. E numa cadeia pode-se ver o interior de todos os quartos. De todos. Sorriu para ninguém. ― Como seus filhos foram assassinados? ― Não tente arrancar isso de mim à força! Billings virou-se para fitar maleficamente o Dr. Harper. ― Eu contarei, não se preocupe. Não sou um dos seus malucos passeando por aí e fingindo ser Napoleão ou explicando que me viciei em heroína porque minha mãe não me amava. Sei que não acreditará em mim. Não me importo. Não faz diferença. Apenas contar será suficiente. ― Muito bem ― disse o Dr. Harper, pegando seu cachimbo. ― Casei-me com Rita em 1965 ― eu tinha vinte e um anos e ela dezoito. Estava grávida. de Denny. Seus lábios se crisparam num sorriso retorcido e assustador, que desapareceu num piscar de olhos. ― Fui obrigado a abandonar os estudos e arranjar emprego, mas não me importei. Amava-os ambos. Éramos muito felizes. ― Rita tornou a engravidar pouco depois que Denny nasceu e Shirl veio ao mundo em dezembro de 1966. Andy nasceu no verão de 1969 e Denny já estava morto nessa época. Andy foi um descuido. Era o que Rita dizia. Afirmava que às vezes esse negócio de controle de natalidade não funciona direito. Creio que foi algo mais que um descuido. Filhos prendem um homem, o senhor sabe. As mulheres gostam disso, especialmente quando o homem é mais inteligente que elas. Não acha que é verdade? Harper soltou um grunhido neutro. ― Não importa, porém. De todo modo, eu o amava. Billings fez a declaração num tom quase vingativo, como se amasse o filho para fazer raiva à mulher. ― Quem matou as crianças? ― perguntou Harper. ― O fantasma ― replicou imediatamente Lester Billings. ― O fantasma matou-as todas. Saía do armário e as matava. Virou-se e sorriu. ― O senhor acha mesmo que sou maluco. Está escrito em sua cara. Mas não me incomodo. Tudo o que desejo fazer é contar e sumir. ― Estou escutando ― disse Harper. ― Tudo começou quando Denny tinha quase dois anos e Shirl ainda era bebê. Ele começou a chorar quando Rita o colocava na cama para dormir. Tínhamos apenas dois quartos, entende? Shirl dormia num berço em nosso quarto. A princípio, julguei que ele chorasse porque já não tinha uma mamadeira para levar consigo para a cama. Rita me disse que não fizesse drama, que o deixasse levar a mamadeira e ele acabaria por deixá-la de lado no devido tempo. Mas é assim que as crianças ficam mal acostumadas. Se formos permissivos demais, elas se tornam mimadas. Então, fazem-nos sofrer. Engravidam alguma pequena, sabe, ou começam a tomar tóxicos. Ou viram veados. Já imaginou acordar um certo dia e descobrir que seu garoto ― o seu filho ― é bicha? ― Depois de algum tempo, porém, quando ele não parou, passei a colocá-lo na cama eu mesmo. E se ele não parasse de chorar, eu lhe dava uma palmada. Então, Rita disse que ele não parava de repetir "luz". Bem, eu não sabia. Crianças daquele tamanho, como podemos saber o que estão dizendo? Só a mãe pode saber. ― Rita queria instalar uma luz noturna. Um daqueles abajures com o Camundongo Mickey ou o Pateta ou algo semelhante. Não permiti. Se um garoto não aprende a perder o medo do escuro quando ainda é pequeno, nunca mais perderá. ― De qualquer maneira, ele morreu no verão seguinte ao nascimento de Shirley. Naquela noite, eu o coloquei na cama e ele começou a chorar imediatamente. Dessa vez, escutei o que disse. Apontou para o armário quando falou. "Fantasma", disse o garoto. "Fantasma, Papai." ― Apaguei a luz, fui para o nosso quarto e perguntei a Rita por que ela resolveu ensinar ao menino uma palavra como aquela. Fiquei tentado a dar-lhe umas bofetadas, mas não dei. Ela afirmou que nunca o ensinara a dizer aquilo. E eu a chamei de maldita mentirosa. ― Foi um péssimo verão para mim, entende? O único emprego que consegui foi carregar caminhões de Pepsi-Cola num armazém e passava o tempo todo cansado. Shirl acordava e chorava todas as noites, de modo que Rita a pegava no colo para niná-la. Voulhe contar, às vezes eu sentia ímpetos de atirá-las ambas pela janela. Meu Deus, às vezes as crianças nos deixam loucos. Eu seria capaz de matá-las. ― Bem, a garotinha me acordou às três da manhã, bem no horário de costume. Ainda meio adormecido, fui ao banheiro e Rita me pediu que desse uma espiada em Denny. Respondi-lhe que ela mesmo o fizesse e voltei para cama. Já estava quase dormindo quando ela começou a gritar. ― Levantei-me e fui até lá. O menino estava deitado de costas, morto. Branco como farinha de trigo, exceto onde o sangue tinha... tinha afundado. Na parte posterior das pernas, na cabeça, na bun... nas nádegas. Tinha os olhos abertos. Isso foi o pior, sabe? Esbugalhados e vidrados, como os olhos que vemos nas cabeças empalhadas dos troféus de caça que alguns colocam acima da lareira. Como as fotografias daqueles garotos mortos no Vietnã. Mas um garoto americano não devia ficar assim. Morto de costas. Usando fraldas e calcinhas de borracha, porque começara a urinar-se novamente nas duas últimas semanas. Horrível. Eu amava aquele menino. Billings sacudiu lentamente a cabeça e depois exibiu o mesmo sorriso contorcido e assustador. ― Rita estava quase morrendo de tanto gritar. Tentou pegar Benny no colo e embalá-lo, mas não permiti. Os tiras não gostam que a gente toque nas provas. Sei que... ― Você já sabia que era o fantasma, na época? ― indagou Harper em voz baixa. ― Oh, não. Naquela época, não. Mas vi uma coisa. Na ocasião, não significou muito para mim, mas minha mente arquivou-a. ― O que foi? ― A porta do armário estava aberta. Não muito. Apenas uma fresta. Mas eu sabia que a fechara, entende? Lá dentro havia sacos plásticos da lavanderia. Uma criança mexe naquilo e pronto: asfixia. Sabe disso? ― Sim. O que aconteceu, então? Billings sacudiu os ombros. ― Nós o enterramos. Olhou morbidamente para as mãos que haviam lançado terra em três pequenos caixões. ― Houve algum inquérito? ― Claro ― os olhos de Billings faiscaram com um brilho sardônico. Um maldito caipira com um estetoscópio e uma maleta negra cheia de balas de hortelã e um casaco de pele de carneiro conseguida em alguma faculdade de veterinária. Morte de berço, disse ele! Já escutou semelhante monte de merda? O garoto tinha três anos! ― A morte de berço é muito comum durante o primeiro ano ― disse cautelosamente Harper. ― Todavia, esse diagnóstico consta de atestados de óbito de crianças até a idade de cinco anos, por falta de um melhor... ― Merda! ― berrou valentemente Billings. Harper tornou a acender o cachimbo. ― Um mês depois do enterro, passamos Shirl para o antigo quarto de Denny. Rita resistiu com unhas e dentes, mas a última palavra foi minha. Doeu-me, claro que sim. Deus, como eu gostava de ter a garotinha em nosso quarto. Mas não devemos ser superprotetores. Assim, mutilamos a criança. Quando eu era menino, minha mãe costumava levar-me à praia e depois ficava rouca de tanto gritar: "Não vá tão longe! Aí é muito fundo! Tem correnteza! Aí não dá pé!" Até mesmo mantinha-se alerta contra tubarões, juro por Deus. Hoje em dia, nem consigo chegar perto do mar. Uma vez, quando Denny ainda era vivo, Rita me obrigou a levar a família à praia em Savin Rock. Fiquei enjoado como um cão. Eu sei, entende? Não devemos superproteger as crianças. E também não mimá-los. A vida continua. Shirl foi direto para o berço de Denny. Jogamos o colchão de Denny no lixo. Eu não queria que minha filha pegasse micróbios. ― Assim, um ano se passou. E uma noite, quando eu botava Shirl na cama para dormir, ela começou a chorar e berrar. "Fantasma, Papai! Fantasma, fantasma!" ― Aquilo me sobressaltou. Era exatamente como Denny. E comecei a lembrar-me daquela porta do armário, apenas entreaberta quando o encontramos. Tive vontade de levá- la para nosso quarto naquela noite ― E levou? ― Não ― disse Billings, olhando para as mãos e contorcendo o rosto. ― Como eu poderia enfrentar Rita e admitir que estava errado? Eu tinha que ser forte. Ela sempre foi tão molenga... veja com que facilidade foi para a cama comigo quando ainda não éramos casados. Harper disse: ― Em compensação, veja com que facilidade você foi para a cama com ela. Billings imobilizou-se no ato de recruzar as mãos e virou lentamente a cabeça para encarar Harper. ― Está querendo bancar o engraçadinho? ― Certamente que não ― replicou Harper. ― Então, deixe-me contar à minha maneira ― disse Billings, irritado. ― Vim aqui para desabafar. Para contar minha história. Não falarei de minha vida sexual, se é isso que está querendo. Rita e eu tínhamos uma vida sexual muito normal, sem nenhuma dessas sujeiras. Sei que algumas pessoas se excitam ao falar no assunto, mas não sou uma delas. ― Está bem ― disse Harper. ― Muito bem ― replicou Billings com nervosa arrogância. Parecia haver perdido o fio dos pensamentos e seus olhos procuraram inquietamente a porta do armário, que estava bem fechada. ― Gostaria que eu abrisse aquela porta? ― indagou Harper. ― Não! ― respondeu Billings depressa. Passou a mão na testa, como se tentasse colocar as recordações em ordem. ― Para que desejaria olhar para suas galochas? ― e soltou uma risadinha nervosa. ― O fantasma pegou Shirl também ― prosseguiu ele. ― Um mês depois. Mas algo aconteceu antes disso. Certa noite, ouvi um barulho lá dentro. Então, ela gritou. Abri a porta muito depressa ― a luz do corredor estava acesa ― e... ela estava sentada no berço, chorando, e... alguma coisa se mexeu. Nas sombras, perto do armário. Alguma coisa se esgueirou. ― A porta do armário estava aberta? ― Um pouco; só uma fresta ― respondeu Billings, umedecendo os lábios com a língua. ― Shirl estava gritando alguma coisa a respeito do fantasma. E disse algo mais a respeito do que me soou como "garras". Só que ela disse "galas". Crianças pequenas encontram dificuldade com o som do "r". Rita subiu correndo e perguntou o que havia. Respondi que a menina se assustara com as sombras dos galhos movendo-se no teto. ― Gala? ― disse Harper. ― Hem? ― Gala... Estaria ela, de algum modo, referindo-se ao armário? ― Talvez ― disse Billings. ― Poderia ser isso. Mas creio que foi "garras". Seu olhar procurou outra vez a porta do armário. ― Garras. Garras compridas ― sua voz sumiu num sussurro. ― Você olhou dentro do armário? ― S-sim ― disse Billings, com as mãos fortemente cruzadas sobre o peito; a força era suficiente para deixar os nós dos dedos esbranquiçados. ― Havia alguma coisa lá dentro? Você viu o... ― Não vi nada! ― berrou bruscamente Billings. Então, as palavras jorraram aos borbotões, como se uma rolha negra fosse retirada da garrafa de sua alma: ― Quando ela morreu eu a encontrei, entende? E ela estava toda preta. Toda. Engolira a própria língua e estava tão preta quanto um negro num espetáculo teatral. E olhava para mim. Seus olhos pareciam aqueles que vemos em animais empalhados, brilhantes e horríveis, como bolas de gude vivas, e diziam: "Ele me pegou, Papai. Você deixou ele me pegar. Você me matou. Você ajudou a me matar..." Sua voz foi sumindo aos poucos. Uma única lágrima, muito grande e silenciosa, escorreu-lhe pelo lado do rosto. ― Foi uma convulsão cerebral, entende? As crianças são acometidas por ela, às vezes. Um sinal errado partido do cérebro. Fizeram uma autópsia no Hospital de Hartford e disseram que, devido à convulsão, ela engolira a própria língua, morrendo asfixiada. E tive que voltar para casa sozinho porque precisaram manter Rita no hospital, sob a ação de sedativos. Ela estava fora de si. Tive que voltar para casa sozinho e sei que uma criança não tem convulsões simplesmente porque o cérebro pifou. É possível amedrontar uma criança até provocar uma convulsão. E eu tive que voltar para a casa onde ele estava. Em seguida, murmurou: ― Dormi no sofá da sala. Com a luz acesa. ― Aconteceu alguma coisa? ― Tive um sonho ― disse Billings. ― Eu estava num quarto escuro e havia alguma coisa que eu não conseguia... que eu não conseguia ver direito, dentro do armário. Lembrou me uma estória em quadrinhos que li quando criança. Estórias da Cripta, recorda-se? Jesus Cristo! Tinha um sujeito chamado Graham Innes; era capaz de atrair qualquer coisa deste mundo ― e algumas de fora. De qualquer modo, na estória uma mulher afogou o marido, entende? Pôs blocos de cimento nos pés dele e o atirou no poço de uma pedreira. Só que ele voltou. Todo apodrecido, verde-escuro, e os peixes lhe tinham comido um dos olhos; havia algas em seus cabelos. Ele voltou e matou a mulher. E quando acordei no meio da noite, pensei que ele estava debruçado sobre mim. Com garras... garras compridas... O Dr. Harper olhou para o relógio digital embutido em sua mesa de trabalho. Lester Billings estivera falando durante quase meia hora. ― Quando sua esposa voltou para casa, que atitude assumiu em relação a você? ― Ela ainda me amava ― respondeu Billings com orgulho. ― Ainda queria fazer o que eu mandava. Esse é o lugar da esposa, certo? Esse women's lib só resulta em pessoas doentes. A coisa mais importante na vida é uma pessoa conhecer seu lugar. Sua... sua... bem... ― Sua posição na vida? ― É isso aí! ― exclamou Billings, estalando os dedos. ― É exatamente isso. E uma mulher deve acompanhar o marido. Oh, ela ficou um tanto desbotada, por assim dizer, nos quatro ou cinco meses seguintes... arrastava os pés pela casa, não assistia à televisão, não cantava, não ria. Eu sabia que ficaria boa. Quando as crianças são tão pequenas, os pais não se apegam tanto a elas. Depois de algum tempo, é preciso abrir uma gaveta e olhar uma fotografia para conseguir lembrar exatamente como elas eram. ― Rita queria outro filho ― acrescentou ele sombriamente. ― Eu lhe disse que era má idéia. Oh, não para sempre, mas durante algum tempo. Disse-lhe que era tempo de nos recuperarmos e começarmos a aproveitarmos mutuamente. Nunca tivéramos oportunidade de fazer isso antes. Se quiséssemos ir a um cinema, tínhamos que arranjar alguém para cuidar das crianças. Não podíamos ir à cidade ver os Mets jogarem, a menos que os pais dela ficassem com as crianças, pois minha mãe não queria nada conosco. Denny nasceu pouco depois de nos casarmos, entende? Minha mãe dizia que Rita era uma vagabunda, uma vigarista de esquina. Vigaristas de esquina, era assim que minha mãe sempre as chamava. Não é uma piada? Uma vez ela me obrigou a sentar e falou-me das doenças que um homem pode contrair de uma vi... de uma prostituta. Como o ca... o pênis aparece com uma feridinha num dia e está todo podre no dia seguinte. Ela nem mesmo compareceu ao nosso casamento. Billings tamborilou com os dedos no peito. ― O ginecologista de Rita vendeu-lhe a idéia de usar um DIU dispositivo intra- uterino. Infalível, afirmou ele. Basta enfiá-lo na... no lugar da mulher e pronto. Se houver alguma coisa lá dentro, o óvulo não consegue fertilizar-se. A pessoa nem mesmo sente que tem alguma coisa dentro. Ele sorriu com sombria doçura. ― Ninguém sabe se a coisa está ou não lá dentro. E no ano seguinte Rita ficou grávida. Que infalibilidade! ― Nenhum método de controle de natalidade é perfeito ― disse Harper. ― A pílula tem apenas noventa por cento de eficiência. O DIU pode ser expulso por cólicas, fluxo menstrual abundante e, em casos excepcionais, pelo esforço da evacuação. ― Sim. E também pode ser retirado. ― É possível. ― E o que acontece em seguida? Ela fica tricotando roupinhas, cantando no chuveiro e comendo picles como uma louca. Sentando-se no meu colo para dizer que talvez fosse pela vontade divina. Merda. ― O bebê nasceu no final do ano após a morte de Shirl? ― Exatamente. Um menino. Rita deu-lhe o nome de Andrew Lester Billings. Eu não quis saber dele, pelo menos a princípio. Meu lema era: ela o arranjou, portanto tome conta dele. Sei como isto pode soar, mas o senhor precisa compreender que passei por maus bocados. ― Mas acabei gostando dele, entende? Em primeiro lugar, foi o único de nossa prole que saiu parecido comigo. Denny se parecia com a mãe e Shirl não se parecia com ninguém, exceto, talvez, minha avó Ann. Mas Andy era minha imagem escarrada. ― Eu ia brincar com ele no cercado quando chegava em casa do trabalho. Ele agarrava meu dedo, sorria e gargarejava. Com apenas nove semanas de idade o garoto já sorria para o velho pai. Acredita? ― Então, certa noite, lá estou eu saindo de uma farmácia com um brinquedo para pendurar no berço do garoto. Eu! As crianças não apreciam brinquedos até terem idade suficiente para dizer "muito obrigado" este sempre foi o meu lema. Mas lá estava eu, comprando aquela bugiganga e, de repente, compreendendo que o amava mais que aos outros. Nessa época eu tinha outro emprego, muito bom, vendendo brocas de perfuração da Cluett & Sons. Dei-me muito bem e, quando Andy completou um ano, nós nos mudamos para Waterbury. A velha casa trazia muitas recordações desagradáveis. ― E tinha armários demais. ― Aquele ano seguinte foi o melhor para nós. Eu daria todos os dedos da mão direita para tê-lo de volta. Oh, a guerra no Vietnã continuava e os hippies ainda andavam sem roupa por aí, os negros faziam algazarra, mas nada disso nos incomodava. Morávamos numa rua tranqüila, com bons vizinhos. Éramos felizes ― resumiu Billings. ― Uma vez, perguntei a Rita se ela não estava preocupada. O senhor sabe, o azar anda por toda parte. Ela respondeu que não se preocupava por nossa causa. Disse que Andy era especial. Que Deus erguera uma muralha de proteção em volta dele. Billings fitou morbidamente o teto. ― O ano passado não foi tão bom. Algo na casa mudou. Passei a deixar as botas no corredor, porque já não gostava de abrir a porta do armário embutido. Pensava sempre: ora, e se o fantasma estiver lá dentro? E começava a imaginar que ouvia barulhos esquisitos, como se algo negro e verde, molhado, se mexesse lá dentro. ― Rita indagou se eu andava trabalhando demais e passei a ser ríspido com ela, como nos velhos tempos. Chegava a ficar enjoado por ter que deixá-los sozinhos em casa ao ir para o trabalho, mas alegrava-me precisar sair. Deus me perdoe, mas eu ficava satisfeito por sair. Comecei a pensar, sabe, que o fantasma se perdeu de nós durante algum tempo quando nos mudamos. Foi obrigado a caçar-nos, esgueirando-se pelas ruas à noite e talvez se arrastando pelos esgotos. Farejando-nos. Demorou um ano, mas encontrounos. Quer Andy e me quer, também. Comecei a pensar: talvez quando pensamos bastante tempo em alguma coisa e acreditamos nela, ela se tome real. Talvez todos os monstros de que tínhamos medo em criança, Frankenstein, o Lobisomem e Mamãe, fossem reais. Bastante reais para matarem meninos que todos acreditavam terem caído em buracos, morrido afogados em lagos ou simplesmente desaparecido. Talvez... ― Está esquivando-se de alguma coisa, Sr. Billings? Billings passou muito tempo calado; dois minutos se escoaram, pelo relógio digital. Então, ele disse abruptamente: ― Andy morreu em fevereiro. Rita não estava em casa. Recebera um chamado do pai. A mãe dela sofrera um acidente de automóvel no dia seguinte ao Ano Novo e estava à morte. Rita tomou um ônibus naquela mesma noite. ― A mãe não morreu mas esteve em perigo de vida durante muito tempo: dois meses. Contratei uma mulher ótima, que ficava com Andy durante o dia. E ficávamos juntos à noite. E as portas dos armários embutidos estavam sempre se abrindo. Billings umedeceu os lábios com a língua. ― O garoto dormia no meu quarto. É curioso, também. Uma vez, quando ele tinha dois anos, Rita me perguntou se eu desejava mudá-lo para outro quarto. Spock ou algum daqueles outros charlatães alega que é prejudicial às crianças dormirem com os pais, entende? Diz que causa traumas relativos ao sexo e tudo o mais. Mas nunca fazíamos sexo a menos que o garoto estivesse dormindo. E eu não queria mudá-lo de quarto. Tinha medo, depois do que aconteceu a Danny e Shirl. ― Mas mudou-o, não é mesmo? ― indagou o Dr. Harper. ― Sim ― respondeu Billings com um sorriso doente e amarelo. Mudei-o. Outro silêncio. Billings pareceu lutar contra ele. ― Tive que mudar! ― bradou finalmente. ― Tive! Tudo estava bem enquanto Rita ficou em casa, mas depois que ela partiu o fantasma se tornou atrevido. Começou a... ― Billings rolou os olhos para Harper e exibiu os dentes num sorriso selvagem. ― Oh, você não vai acreditar. Sei o que pensa: sou mais um maluco para seus registros. Sei disso, mas você não esteve lá, seu maldito bisbilhoteiro. ― Uma noite, todas as portas da casa se escancararam. De manhã, levantei-me e encontrei um rastro de lama e sujeira no corredor, entre o armário embutido dos casacos e a porta da frente. O fantasma saíra? Entrara? Não sei! Juro por Deus, não sei! Discos arranhados e cobertos de lama, espelhos quebrados... e os barulhos... os barulhos... Passou a mão pelos cabelos. ― Eu acordava às três da manhã, olhava para a escuridão e dizia a princípio: "É apenas o relógio." Mas, além disso, escutava algo que se movia furtivamente. Contudo, não furtivamente demais, pois queria que eu escutasse. Um barulho úmido e escorregadio, como algo escorrendo no ralo da cozinha. Ou estalidos, como garras arranhando levemente o corrimão da escada. E eu fechava os olhos, sabendo que era ruim escutar aquilo, mas pior seria ver... ― E sempre tinha medo de que os ruídos cessassem durante algum tempo e, depois, uma gargalhada explodisse em meu rosto, ou um hálito com cheiro de repolho podre, e mãos me apertassem a garganta. Billings estava pálido, trêmulo. ― Portanto, mudei Andy de quarto. Sabia que o fantasma iria buscá-lo, entende? Por que ele era o mais fraco. E foi o que aconteceu. Logo na primeira noite, o garoto gritou de madrugada e, finalmente, quando tive cojones para entrar no quarto, encontrei-o em pé na cama, berrando: "Papai... fantasma... quero ir com Papai, ir com Papai." A voz de Billings ficou muito aguda, como a de uma criança; ele deu a impressão de murchar no sofá. ― Mas eu não pude ― continuou, no mesmo tom agudo e trêmulo. Não pude. E uma hora mais tarde escutei outro grito. Um grito horrível, gorgolejante. E compreendi o quanto eu o amava, pois corri para o quarto e nem mesmo acendi a luz. Corri, corri, corri... Oh, meu Jesus, o fantasma o pegara; sacudia-o, como um cão sacode um trapo... Pude ver algo horrível, com ombros curvados e cabeça de espantalho... Senti um cheiro terrível, como o de um camundongo morto numa garrafa vazia... E escutei... A voz de criança morreu aos poucos. De repente, voltou ao tom adulto: ― Escutei o pescoço de Andy partir-se ― a voz era fria, inexpressiva. ― Um barulho semelhante ao do gelo se quebrando sob um patinador durante o inverno. ― Então, o que aconteceu? ― Oh, eu fugi ― respondeu Billings na mesma voz fria e inexpressiva. ― Fui para um restaurante que ficava aberto a noite inteira. Que tal isso como exemplo de covardia? Corri para o restaurante e tomei seis xícaras de café. Depois, voltei para casa. O dia já raiava. Chamei a polícia antes mesmo de subir. Andy estava caído no chão, fitando-me. Acusando-me. Um filete de sangue lhe escorria do ouvido. Só uma gota, na verdade. E a porta do armário estava aberta ― só uma fresta. A voz se calou. Harper olhou para o relógio digital. Cinqüenta minutos haviam transcorrido. ― Marque hora com a enfermeira ― disse ele. ― Na realidade, marque várias consultas. Às terças e quintas estará bem? ― Só vim contar minha história ― disse Billings. ― Desabafar, Menti à polícia, entende? Disse-lhes que o garoto devia ter tentado sair do berço durante a noite... Eles engoliram. Claro que engoliram. Era o que parecia. Mas Rita sabia. Rita... finalmente... sabia... Cobriu os olhos com o braço direito e começou a chorar. ― Sr. Billings, temos muito sobre que conversarmos ― disse o Dr. Harper após um intervalo. ― Creio que poderei remover parte do seu sentimento de culpa, mas antes é preciso que o senhor deseje livrar-se dele. ― O senhor não acredita que eu deseje? ― exclamou Billings, tirando o braço dos olhos vermelhos, inchados, magoados. ― Ainda não ― replicou Harper tranqüilamente. ― Terças e quintas? Após prolongado silêncio, Billings resmungou: ― Maldito charlatão. Está bem. Está bem. ― Marque hora com a enfermeira, Sr. Billings. E passe um bom dia. Billings riu ocamente e saiu depressa do consultório, sem olhar para trás. A mesa da enfermeira estava vazia. Um pequeno aviso colocado sobre o mataborrão dizia: "Voltarei num minuto." Billings deu meia-volta e entrou no consultório. ― Doutor, a enfermeira... A sala estava vazia. Mas a porta do armário embutido estava aberta. Só uma fresta. ― Ótimo ― disse a voz dentro do armário. ― Ótimo. As palavras soavam como se tivessem passado entre lábios cheios de algas marinhas apodrecidas. Billings permaneceu pregado ao chão quando a porta do armário se escancarou. Sentiu vagamente um calor nas pernas ao urinar-se. ― Ótimo ― disse o fantasma, saindo do armário com andar trôpego. Ainda trazia a máscara do Dr. Harper na mão descamada, de garras compridas.
 

Rust Hill Copyright © 2010 | Designed by: compartidisimo