• |
  • |
  • |

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

A excursão -

"Esta é a última chamada para a Excursão 701" – a agradável voz feminina ecoou através do Blue Concourse no Departamento Terminal Portuário de Nova York. O DTP não mudara muito nos últimos mais ou menos trezentos anos – continuava maltratado e um tanto amedrontador. A voz feminina automatizada talvez fosse o detalhe mais agradável no local. – "Todos os passageiros munidos de passagem deverão estar agora no salão-dormitório do Blue Concourse. Verifique se seus papéis de confirmação estão em ordem. Obrigada." O salão-dormitório no andar de cima nada tinha de maltratado. Era atapetado de parede a parede em cinza-ostra. As paredes exibiam uma tonalidade branco casca-de-ovo e dela pendiam agradáveis quadros abstratos. Uma permanente calmante progressão de cores se encontrava e revoluteava no teto. Havia cem divãs no grande recinto, ordenadamente espaçados em fileiras de dez. Cinco atendentes da Excursão circulavam por ali, falando em voz baixa e animada, enquanto ofereciam copos de leite. A entrada ficava a um lado da sala, flanqueada por guardas armados e outro atendente da Excursão, que no momento checava os papéis de confirmação de um passageiro retardatário, um homem de negócios com expressão apoquentada e o World Times de Nova York dobrado debaixo de um braço. Na direção exatamente oposta, o piso descia em uma espécie de calha, com cerca de metro e meio de largura e talvez uns três de comprimento; essa passagem insinuava-se através de uma abertura sem portas, tendo uma vaga semelhança com um escorrega para crianças. A família Oates jazia lado a lado em quatro divãs-Excursão, perto do final da sala. Mark Oates e Marilys, sua esposa, flanqueavam os dois filhos. – Papai, vai me falar sobre a Excursão agora? – perguntou Ricky. – Você prometeu. – Isso mesmo, pai, você prometeu – acrescentou Patrícia, com um agudo risinho sufocado, sem motivo algum. Um homem de negócios com a corpulência de um touro olhou para eles e depois voltou a concentrar-se na pasta de papéis que examinava, enquanto jazia deitado de costas, os sapatos reluzentes ordenadamente juntos. De algum lugar, chegou o murmúrio surdo de conversas e o rumor de passageiros ajeitando-se nos divãs-Excursão. Mark olhou para Marilys Oates e piscou. Ela piscou de volta, mas estava quase tão nervosa quanto Patty parecia. Por que não? pensou Mark. Era a Primeira Excursão para os três. Ele e Marilys haviam discutido as vantagens e inconveniências de uma mudança da família inteira por seis meses – desde que ele fora notificado pela Texaco Water de que seria transferido para a Cidade de Whitehead. Finalmente, decidiram que iriam todos e permaneceriam em Marte durante os dois anos em que Mark ficaria lá. Agora, observando a palidez de Marilys, ele se perguntou se ela lamentava a decisão. Olhou para o relógio e viu que ainda faltava meia hora para a partida da Excursão. Havia tempo suficiente para contar a história... e imaginou que isso deixaria as crianças menos nervosas. Quem sabe, talvez até acalmasse Marilys um pouco. – Muito bem – decidiu-se. Ricky e Pat o encaravam com seriedade. Ricky tinha doze anos e Pat nove. Disse novamente para si mesmo, que Ricky estaria atolado no pântano da puberdade e sua filha provavelmente teria seios em desenvolvimento, quando retornassem à terra. E de novo, achou difícil de acreditar. As crianças freqüentariam a pequena Escola Mista de Whitehead, juntamente com os cento e poucos filhos de engenheiros e pessoal da companhia de petróleo que lá estavam; seu filho bem poderia engajar-se em uma viagem de campanha geológica a Fobos, não muitos meses distante. Era difícil de acreditar... mas verdadeiro. Querem saber? pensou torcidamente. Talvez isso também me traga certas vantagens. – Até onde sabemos – começou ele – a Excursão foi inventada há cerca de trezentos e vinte anos atrás, por volta de 1987, por um indivíduo chamado Victor Carune. Ele fez isso como parte de um projeto privado de pesquisa, financiado por algum dinheiro do governo... e, eventualmente, o governo tomou as rédeas, claro está. Por fim, a coisa foi passada para o governo e também para as companhias de petróleo. O motivo de ignorarmos a data exata, é porque Carme era um tanto excêntrico... – Está querendo dizer que ele era maluco, papai? – perguntou Ricky. – Excêntrico significa só um pouquinho maluco, meu bem – disse Marilys, enquanto sorria para Mark, por cima das crianças. Ele pensou que sua esposa agora parecia algo menos nervosa. – Oh! – De qualquer modo, ele fez experiências com o processo por bastante tempo, antes de informar ao governo o que descobrira – prosseguiu Mark – mas só deu a informação, porque estava ficando sem dinheiro e eles não pretendiam continuar a financiá-lo. – Seu dinheiro prontamente devolvido – disse Pat, tornando a dar aquela risadinha aguda. – Exato, querida – disse Mark e desarrumou-lhe o cabelo delicadamente. No extremo oposto do recinto, ele viu uma porta deslizar silenciosamente dando passagem a mais dois atendentes, trajando os vivos macacões do Serviço Excursão e empurrando uma mesa rolante. Sobre ela, havia um bocal de aço inoxidável preso a uma mangueira de borracha; debaixo da mesa, esteticamente escondidas, Mark sabia que havia duas garrafas de gás; na sacola de malhas presa ao lado, estavam cem máscaras descartáveis. Mark continuou falando, não querendo que os seus vissem os representantes do Letes antes do momento oportuno. E, se conseguisse tempo para relatar toda a história. eles acolheriam de braços abertos os aplicadores do gás. A alternativa também devia ser considerada. – Naturalmente, vocês sabem que a Excursão é teletransporte, nem mais e nem menos – disse ele. – Por vezes, na Química e Física das universidades, dão-lhe o nome de Processo Carune, mas em realidade é teletransporte, tendo sido o próprio Carune a acreditar-se no que dizem – que o denominou "a Excursão". Ele apreciava a Ficção científica e há uma história, escrita por um homem chamado Alfred Bester e intitulada As estrelas são o nosso destino, na qual o autor emprega a palavra "excursão" como teletransporte. Só que, no livro, pode-se fazer a Excursão apenas pensando nela, o que evidentemente não podemos. Os atendentes agora fixavam a máscara ao bocal de aço e a estendiam a uma mulher idosa, no extremo oposto do recinto. Ela a tomou, inalou uma vez e caiu em seu divã, imóvel e flácida. Sua saia subiu um pouco, revelando uma coxa bamba, semelhante a um mapa rodoviário de veias varicosas. Um atendente gentilmente ajeitou a saia para ela, enquanto o outro se desfazia da máscara usada e afixava uma nova. Era um processo que fazia Mark pensar nos copos plásticos dos quartos de motel. Desejava ardentemente que Pat se acalmasse um pouquinho: vira crianças que precisavam ser subjugadas em seus divãs e que, por vezes, gritavam enquanto a máscara de borracha lhes cobria o rosto. Não era uma reação anormal em uma criança, pensou ele, porém era uma visão desagradável e não queria que acontecesse a Patty. No tocante a Ricky, sentia-se mais confiante. – Creio que se poderia dizer que a Excursão surgiu no exatíssimo momento – recomeçou. Falava para Ricky, mas estendeu o braço e segurou a mão da filha. Os dedos de Pat se fecharam sobre os dele, com imediata e amedrontada pressão. A palma dela estava fria, suando ligeiramente. – O mundo vinha ficando sem petróleo e a maioria do que sobrara pertencia aos povos dos desertos do Oriente Médio, que o usavam como arma política. Eles tinham formado um cartel petrolífero a que denominaram OPEP... – O que é um cartel, papai? – perguntou Patty. – Bem, é um monopólio – respondeu Mark. – Como um clube, meu bem – disse Marilys. – E a pessoa só podia entrar nesse clube se tivesse quantidades de petróleo. – Oh! – Não tenho tempo para explicar toda a confusão – disse Mark. – Vocês vão estudar alguma coisa disso na escola, mas foi uma confusão – e deixemos como está. Se você tinha um carro, só podia dirigi-lo dois dias por semana, além do que, a gasolina custava quinze pratas antigas o galão... – Puxa! – exclamou Ricky. – Ela hoje só custa quatro centavos o galão, não é, pai? Mark sorriu. – Aí está o motivo de estarmos indo para onde vamos. Ricky. Em Marte há petróleo bastante para durar quase oito mil anos, enquanto que em Vênus há para outros vinte mil... Enfim, o petróleo não é mais tão importante. Agora, aquilo de que mais precisamos é... – Água! – gritou Patty. O homem de negócios ergueu os olhos de sua papelada e sorriu para ela por um instante. – Exato – disse Mark. – Porque nos anos entre 1960 e 2030, envenenamos a maioria da água que possuíamos. A primeira extração de água das calotas de gelo marcianas foi chamada... – Operação Canudinho – disse Ricky. – Certo. Em 2045, mais ou menos. Contudo, muito antes disso, a Excursão estava sendo usada para encontrar fontes de água potável aqui na terra. Agora, a água é nossa principal exportação marciana... ficando o petróleo estritamente em posição secundária. Contudo, era importante naquela época. As crianças assentiram. – A questão é que essas coisas sempre estiveram lá, mas só conseguíamos obtê-las por causa da Excursão. Quando Carune inventou este processo, o mundo descambava para uma nova idade média. No inverno anterior, mais de dez mil pessoas morreram congeladas nos Estados Unidos apenas, já que não havia energia suficiente para aquecê-las. – Oh, puxa! – exclamou Patty, em tom prosaico. Mark olhou para a direita e viu os atendentes falando com um homem de ar tímido, tentando convencê-lo. Por fim, ele aceitou a máscara e pareceu cair morto em seu divã, segundos mais tarde. Marinheiro de primeira viagem, pensou Mart. A gente percebe logo. – Para Carune, a coisa começou com um lápis... algumas chaves... um relógio de pulso... e então, alguns ratinhos. Os ratinhos lhe mostraram que havia um problema... Victor Carune voltou a seu laboratório em uma vertiginosa febre de excitamento. Pensou que agora sabia como Morse, Alexander Graham Bell e Edison se haviam sentido... só que isto era maior do que todos eles e, por duas vezes, quase acabou com a caminhonete, ao retornar da loja de animais de estimação em New Paltz, onde gastara seus últimos vinte dólares na compra de nove ratinhos brancos. O que lhe restava no mundo eram os noventa e três centavos no bolso direito do paletó e os dezoito dólares em sua conta de poupança... mas isto não lhe ocorreu. E, se ocorresse, certamente não o preocuparia. O laboratório ficava em um celeiro restaurado, no final de uma estrada de terra batida com um quilômetro de comprimento, partindo da Rota 26. Foi ao manobrar para a estradinha, que quase espatifou sua caminhonete Brat pela segunda vez. O tanque de gasolina estava quase vazio e não haveria mais combustível para dez dias e duas semanas, porém isto tampouco o preocupava. Sua mente estava em delicioso torvelinho. O que acontecera não era totalmente inesperado. Não. Um dos motivos que levaria o governo a ajudá-lo com a mísera subvenção de vinte mil dólares anuais, era porque a possibilidade irrealizada sempre estivera presente no campo de transmissão de partículas. No entanto, ter de acontecer assim... de repente... sem nenhum aviso... e movido, por menos eletricidade do que a necessária ao funcionamento de uma TV colorida... Deus! Cristo! O Brat estacou com uma guinchada de freios à entrada de terra nos fundos do celeiro, Carune agarrou a caixa sobre o assento sujo ao seu lado, aferrando-a pelas alças (na caixa havia cães, gatos, hamsters e peixinhos dourados, mais a inscrição EU VIM DA CASA DE ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO STACKPOLE'S) e correu para as grandes portas duplas. Do interior da caixa brotavam rumores das corridinhas e movimentos de suas cobaias. Ele tentou empurrar uma das enormes portas em seus trilhos corrediços, mas quando ela não se moveu, recordou que a trancara. "Merda!" exclamou Carune em voz alta, enquanto procurava as chaves no bolso. O governo exigira que o laboratório ficasse sempre trancado – era uma das condições sob as quais soltava seu dinheiro – mas Carune vivia esquecendo. Encontrou as chaves e, por um momento, ficou apenas olhando para elas, hipnotizado, passando a polpa do polegar sobre as chanfraduras na chave de ignição da Brat. Tornou a pensar: Deus! Cristo! Depois, seus dedos percorreram as chaves no molho, até encontrarem a Yale que abria a porta do celeiro. Assim como o primeiro telefone havia sido usado inadvertidamente – Bell gritando nele, "Watson, venha cá!" ao derramar algum ácido em seus papéis e em si mesmo – também o primeiro ato de teletransporte ocorrera por acidente. Victor Carune teletransportara os dois primeiros dedos de sua mão esquerda através dos cinqüenta metros de largura do celeiro. Carune havia instalado dois portais nos lados opostos do celeiro. Em seu final, havia uma arma elementar de íons, do tipo encontrado em qualquer loja de artigos eletrônicos, por menos de quinhentos dólares. Na outra extremidade, bem após o portal mais distante – ambos retangulares e do tamanho de um livro de bolso – havia uma câmara fosca. Entre os dois portais ficava o que parecia uma cortina de chuveiro opaca, exceto que cortinas de chuveiro não são feitas de chumbo. A idéia era disparar os íons através do Portal Um, contorná-lo e vê-los passando através da câmara fosca logo após o Portal Dois, com a cortina blindada entre os dois, para provar que os íons tinham sido realmente transmitidos. Só que, nos dois últimos anos, o processo funcionara apenas duas vezes – e Carune não tinha a menor idéia de por que isso ocorrera. Enquanto ajustava a pistola de íons, seus dedos haviam deslizado através do portal – em geral não havia qualquer problema, mas nessa manhã, seu quadril também roçara na cavilha interruptora, sobre o painel de controle à esquerda do portal. Carune não percebeu o que tinha acontecido – o mecanismo deixou escapar apenas o menos audível zumbido – até ele sentir um formigamento nos dedos. "Não foi como um choque elétrico", escreveu em seu primeiro e último artigo a respeito, antes que o governo lhe fechasse a boca. O artigo foi publicado em Mecânica Popular, entre várias outras publicações. Carune o vendeu por setecentos e cinqüenta dólares, em um desesperado esforço para manter a Excursão um assunto de empreendimento privado. "Não aconteceu aquele desagradável formigamento de quando pegamos em um fio elétrico desencapado, por exemplo. Foi mais como a sensação de colocar-se a mão no corpo de uma pequena máquina que funcionasse a todo vapor. A vibração é tão rápida e leve que, literalmente, dá essa sensação de formigamento. "Olhei então para o portal, e vi que meu indicador sumira, cortado diagonalmente através da falange média. O segundo dedo desapareceu pouco acima disso. Em adição, a parte em que fica a unha do terceiro dedo havia sumido." Carune puxara a mão instintivamente, gritando. Escreveu mais tarde, ser tamanha a sua certeza de que o sangue jorraria, que chegou a vê-lo, em alucinação. Por um ou dois momentos. Seu cotovelo bateu na pistola de íons e a derrubou da mesa. Ficou parado com os dedos na boca, verificando que continuavam ali, e inteiros. O pensamento de que andara trabalhando demais lhe passou pela cabeça. Pensou também outra coisa: o último conjunto de alterações podia ter... podia ter provocado algo. Não recolocou os dedos de volta. Aliás, em toda a sua vida. Carune só Excurcionou uma vez mais. A princípio, ele nada fez. Deu uma longa e errante caminhada em volta do celeiro, passando as mãos pelos cabelos e perguntando-se se deveria ligar para Carson, em Nova Jersey, ou talvez para Buffington, em Charlotte. Carson não aceitaria um interurbano a cobrar, aquele sovina nojento, mas Buffington provavelmente aceitaria. Então, teve uma idéia súbita e correu até o Portal Dois, pensando que, se seus dedos realmente haviam cruzado o celeiro, poderia haver algum sinal disso. Não havia sinal algum, claro. O Portal Dois ficava no alto de três caixotes de laranjas Pomona empilhados, assemelhando-se a um daqueles brinquedos de guilhotina, sem a lâmina. Em um lado de sua moldura de aço inoxidável ficava uma tomada, com um cordel que ia até o terminal de transmissão, este pouco mais do que um transformador de partículas, ligado a uma linha de alimentação de computador. Isto lhe recordava... Carune olhou para seu relógio e viu que passavam quinze minutos das onze. Seu envolvimento com o governo consistia de dinheiro curto, mais tempo de computador, o qual era infinitamente valioso. Sua ligação com o computador durava até três horas daquela tarde e depois seria adeus, até a segunda-feira. Precisava mover-se, tinha que fazer alguma coisa... "Tornei a olhar para a pilha de caixotes", escreveu ele, em seu artigo para Mecânica Popular, "e então olhei para as polpas de meus dedos. Claro, a prova estava ali. Contudo, pensei então, aquilo não convenceria ninguém, além de mim mesmo. No começo, entretanto, é apenas a nós próprios que temos de convencer. – Qual era o problema. Pai? – perguntou Ricky. – Sim, papai, qual era? – acrescentou Patty. Mark sorriu de leve. Estavam todos atentos agora, inclusive Marilys. Quase haviam esquecido onde estavam. Pelo canto do olho, ele podia ver os atendentes da Excursão empurrando silenciosa e lentamente seu carrinho por entre os Excursionistas, colocando-os para dormir. O processo nunca era tão rápido no setor civil como era no militar, ele havia descoberto: os civis ficavam nervosos e queriam discutir o assunto. O bocal e a máscara de borracha recordavam demais as salas de cirurgia dos hospitais, onde o cirurgião, com suas facas, espreitava de algum ponto atrás da anestesista, esta com sua seleção de gases em recipientes de aço inoxidável. Por vezes havia pânico, histeria, sempre existindo alguns que simplesmente tinham acessos de nervos. Mark observou dois destes, enquanto falava com os filhos: dois homens se haviam limitado a abandonar seus divãs, caminharam até a entrada, sem o menor alvoroço, soltaram os papéis de confirmação espetados em suas lapelas. devolveram-nos e saíram, sem olhar para trás. Os atendentes da Excursão recebiam instruções estritas para evitar discussões com aqueles que iam embora. Sempre havia gente na fila de espera, às vezes quarenta ou cinqüenta pessoas, esperando contra a esperança. Quando iam embora aqueles que não podiam suportar a situação, permitia-se que entrassem as pessoas da fila, com suas próprias confirmações espetadas nas camisas. – Carune encontrou duas lascas em seu dedo indicador – disse ele aos filhos. – Tirou-as e as deixou de lado. Uma se perdeu. mas a outra pode ainda ser vista no Anexo Smithsoniano, em Washington. Foi colocada em uma caixa de vidro hermeticamente lacrada, perto das rochas lunares que os primeiros viajantes espaciais trouxeram da lua... – A nossa lua ou uma de Marte, papai? – perguntou Ricky. – A nossa – respondeu Mark, sorrindo de leve. – Foi lançado a Marte apenas um foguete tripulado por homens, Ricky. Tratava-se de uma expedição francesa, por volta de 2030. De qualquer modo, eis por que um mero e velho pedacinho de madeira, vindo de um caixote de laranjas, está no Instituto Smithsoniano. Foi o primeiro objeto em nosso poder que realmente atravessou o processo do teletransporte – Excursionou – através do espaço. – O que aconteceu depois? – perguntou Patty. – Bem, segundo a história, Carune correu... Carune correu para o Portal Um e ficou lá um instante, o coração em disparada, sem fôlego. Preciso ficar calmo, disse para si mesmo. Tenho que refletir no que houve. Se ficar nervoso, não posso ampliar meu tempo. Ignorando deliberadamente a premência de seu cérebro, que lhe gritava para apressar-se e fazer alguma coisa, ele pegou o cortador de unhas no bolso e usou a ponta da lixa para arrancar a lasca do dedo indicador. Deixou-o cair no papel branco da embalagem interna de uma barra de chocolate que havia comido, enquanto lidava com o transformador e tentava aumentar sua capacidade aferente (aparentemente, teve êxito nisso, além de seus sonhos mais impetuosos). Uma lasca rolou do papel e ficou perdida, mas a outra terminou no Instituto Smithsoniano, trancada em uma caixa de vidro, distanciada do público por uma barreira de grossas cordas de veludo e observada, vigilante e eternamente, por uma câmara de TV em circuito fechado, monitorizada por computador. Terminada a extração da lasca, ele ficou um pouco mais calmo. Um lápis. Era tão bom quanto qualquer outra coisa. Pegou um, ao lado do quadro de avisos sobre a prateleira acima dele e o passou delicadamente pelo Portal Um. O lápis desapareceu limpamente, centímetro por centímetro, como algo em uma ilusão de óptica ou em um truque de excelente mágico. Havia a inscrição EBERHARD FABER N.° 2 em um de seus lados, letras negras estampadas em madeira pintada de amarelo. Quando empurrou o lápis até tudo – exceto EBERH – haver desaparecido, ele deu a volta para o outro lado do Portal Um. Espiou. Viu o lápis como que amputado, como se perfeitamente cortado por uma faca. Tateou o lugar onde deveria estar o resto do lápis e, naturalmente, nada havia. Correu através do celeiro até o Portal Dois, e lá estava a parte que faltava, jazendo sobre o caixote superior. Com o coração batendo tão forte que parecia sacudir todo o seu peito, Carune agarrou o lápis pelo lado da ponta afiada e o puxou pelo restante da travessia. Ergueu-o no ar, olhou para ele. De repente, apanhou-o e escreveu FUNCIONA! em um pedaço de tábua do celeiro. Escreveu com tanta força, que a ponta do lápis se quebrou na última letra. Carune começou a rir estridentemente no celeiro vazio; ria tão alto, que espantou as andorinhas adormecidas e elas começaram a voar por entre os altos caibros do teto. – Funciona! – bradou, e correu de volta ao Portal Um. Agitava os braços, com o lápis quebrado preso no punho fechado. – Funciona! Funciona! Está me ouvindo, Carson, seu filho da puta? Funciona E EU CONSEGUI! – Cuidado com o que diz às crianças, Mark – censurou Marilys. Mark deu de ombros. – Supõe-se que foi o que ele disse. – Bem, não poderia ser mais seletivo ao repetir? – Um urso faz cocô na floresta? – disse Mark, logo em seguida tapando a boca com a mão. As duas crianças riram freneticamente e Mark ficou satisfeito ao notar que aquele tom agudo desaparecera da voz de Patty. Após um momento tentando ficar séria, Marilys começou a rir também. Em seguida, foram as chaves; Carune simplesmente as jogou através do portal. Estava começando a pensar com coerência de novo e pareceu-lhe que a primeira coisa a descobrir, seria se o processo produzia coisas na outra extremidade, exatamente como haviam sido antes ou se, de algum modo, elas sofriam alterações na viagem. Viu as chaves irem e desaparecerem; exatamente no mesmo instante, ouviu-as tilintando no caixote do outro lado do celeiro. Correu até lá – agora, em realidade ia trotando – e, de passagem, fez uma pausa para jogar a cortina de chumbo de volta a seus trilhos. Agora não precisava dela nem da pistola de íons. Dava no mesmo, porque a pistola de íons ficara irremediavelmente destroçada. Apanhou as chaves, foi à fechadura que o governo o forçara a colocar na porta e experimentou a chave Yale. Funcionou perfeitamente. Experimentou a chave da casa. Também funcionou. O mesmo aconteceu com as chaves de seu fichário e a que dava partida à caminhonete Brat. Carune botou as chaves no bolso e tirou seu relógio. Era um Seiko LC de quartzo, com uma calculadora embutida abaixo do mostrador digital – vinte e quatro diminutos botões que lhe permitiam tudo, de adição a subtração, passando pela raiz quadrada. Uma delicada peça de mecanismo – e, com a mesma importância, também um cronômetro. Carune colocou o relógio diante do Portal Um e o empurrou com um lápis. Correu através do celeiro e o apanhou. Antes de empurrar o relógio pela passagem, ele marcava 11:31:07. Agora, marcava 11:31:49. Muito bom. Direto ao dinheiro, mas ele devia ter ali um assistente para confiar o fato de que não houvera nenhum tempo ganho, em absoluto. Bem, não importava. Logo o governo o cercaria de assistentes. Experimentou a calculadora. Dois e dois continuavam sendo quatro, oito dividido por quatro ainda dava dois, a raiz quadrada de onze, como sempre, resultava ser 3,3166247... e por aí adiante. Foi quando ele decidiu que chegara a vez dos ratinhos. – O que aconteceu com os ratinhos, papai? – perguntou Ricky. Mark vacilou ligeiramente. Aqui, precisaria tomar certa cautela, se não quisesse amendrontar seus filhos (para não falar na esposa) tornando-os histéricos, minutos antes de sua primeira Excursão. A questão principal era deixá-los com a certeza de que tudo agora estava bem, que o problema havia sido resolvido. – Como falei, houve um pequeno problema... Sim. Horror, loucura e morte. Que tal isso como pequeno problema garotos? Carune tirou da prateleira a caixa com a inscrição EU VIM DA CASA DE ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO STACKPOLE'S e olhou para seu relógio. Droga, havia colocado o mostrador ao contrário. Virou-o para a posição correta e viu que passavam quinze minutos das duas. Dispunha ainda de uma hora e quinze minutos para o computador. Como o tempo vôa quando a gente se diverte, pensou, e riu desatinadamente. Abriu a caixa, esticou o braço e pegou um chiante ratinho branco pela cauda. Colocou-o diante do Pontal Um e disse, "Vá, ratinho." O ratinho correu prontamente para um lado do caixote de laranjas sobre o qual se situava o portal e disparou em desabalada corrida pelo chão. Praguejando, Carune o caçou e chegou realmente a pegá-lo, antes que ele se espremesse por uma fenda entre duas tábuas e desaparecesse. – MERDA! – gritou, tornando a correr para a caixa dos ratos. Chegou em tempo de jogar para dentro dela dois fugitivos em potencial. Pegou um segundo rato, agora segurando-o pelo corpo (era um físico de profissão, ignorando as maneiras de lidar com ratos) e bateu a tampa da caixa, trancando-a. Com este, Carune não facilitou. O rato agarrou-se à sua palma, de pouco adiantando; terminou caminhando com suas próprias patinhas e atravessou o Portal Um. Carune o ouviu aterrar imediatamente sobre os caixotes no lado oposto do celeiro. Desta vez ele correu velozmente, recordando com que facilidade o primeiro rato lhe fugira. Não precisava ter-se preocupado. O rato branco apenas se agachava no caixote, os olhos opacos, os lados do corpo aspirando fracamente. Carune diminuiu a corrida, aproximando-se com cautela. Não era um homem acostumado a manipular ratos, porém não precisa ser um veterano de quarenta e um anos, para ver que ali havia algo terrivelmente errado. ("O rato não se sentia muito bem após a travessia, disse Mark Dates aos filhos, com um amplo sorriso, que somente sua esposa percebeu ser falso.) Carune tocou o rato. Era como tocar algo inerte – talvez um molho de palha ou serragem ensacada – exceto pelas laterais – aspirando. O rato não olhou para ele; seus olhos estavam fixos diretamente à frente. Carune empurrara um animalzinho vivo, esperto e guinchante pelo Portal Um; ali havia o que parecia um simulacro de rato. Então, estalou os dedos diante dos pequenos olhos rosados do rato. Ele piscou... e caiu morto, deitado de banda. – Então, Carune decidiu experimentar com outro rato – disse Mark. – O que aconteceu ao primeiro? – perguntou Ricky. Mark exibiu novamente aquele vasto sorriso. – Foi aposentado com todas as honras – respondeu. Carune encontrou um saco de papel e dentro dele colocou o rato. Pretendia levá-lo para Mosconi, o veterinário, ainda aquela noite. Mosconi o dissecaria e lhe diria se os órgãos do bichinho tinham ficado avariados. O governo desaprovaria a intromissão de um cidadão privado em um projeto que seria classificado como tríplice altamente secreto, assim que eles fossem informados do sucedido. Tetas robustas, presumia-se que a gata dissera aos gatinhos que se queixavam da quentura do leite. Carune decidira que o Grande Pai Branco em Washington só seria informado da brincadeira o mais tarde possível. Eles bem podiam esperar, por conta da insignificante ajuda que o Grande Pai Branco lhe dera. Tetas robustas. Então, recordou que Mosconi morava onde o diabo perdeu as botas, do outro lado de New Paltz. Não havia gasolina suficiente no Brat para cruzar metade da cidade... quanto mais para a volta. Contudo, já eram 2:03 – sobrava-lhe menos de uma hora para o computador. Decidiu preocuparse mais tarde com a maldita dissecação. Carune construiu uma rampa improvisada, levando à entrada do Portal Um (em realidade, o primeiro Escorrega-Excursão, disse Mark as crianças, e Patty achou deliciosamente divertida a idéia de um Escorrega-Excursão para ratos) e deixou cair nele um novo rato branco. Bloqueou a extremidade final com um livro grande e, após alguns momentos de farejar e sondar sem destino, o rato cruzou o portal e desapareceu. Carune correu para o outro lado do celeiro. O rato estava morto. Não havia sangramento, nenhuma inchação no corpo indicando que uma mudança radical de pressão promovera a ruptura de algo interno. Carune supôs que a carência de oxigênio poderia... Meneou a cabe, impaciente. O rato branco levara apenas escassos segundos na travessia; seu próprio relógio informara que o tempo permanecia uma constante no processo ou quase isso. O segundo rato branco se juntou ao primeiro, no saco de papel. Carune apanhou um terceiro (um quarto, se contarmos o felizardo que escapara pela fenda entre as tábuas), perguntando-se pela primeira vez o que acabaria antes – seu tempo de computador ou seu suprimento de ratos. Este, ele segurou firmemente em torno do corpo, forçando suas ancas através do portal. No outro lado do celeiro, viu as ancas reaparecerem... apenas as ancas. As patinhas desincorporadas arranhavam freneticamente a madeira rústica do caixote. Carune puxou o rato de volta. Nada de catatonia agora; o rato mordeu a pele de ligação entre seu polegar e o indicador, com força bastante para tirar sangue. Rápido, deixou o rato na caixa EU VIM DA CASA DE ANIMAIS DE ESTIMAÇAO STACKPOLE'S e usou o vidrinho de água oxigenada em seu estojo de pronto-socorro do laboratório, a fim de desinfetar a mordida. Colocou um Band-Aid sobre ela, depois vasculhou o local até encontrar um par de grossas luvas de trabalho. Podia sentir o tempo esgotar-se, esgotar-se, esgotar-se. Agora eram 2:11 da tarde. Pegou outro rato e o empurrou de costas pela passagem – todo ele. Correu para o Portal Dois. Este rato viveu por quase dois minutos, chegando mesmo a caminhar um pouco. Depois cambaleou sobre o caixote de laranjas Pomona, caiu de banda, esforçou-se fracamente para ficar sobre os pés e terminou caindo agachado. Carune estalou os dedos perto da cabeça do animalzinho e ele conseguiu dar uns quatro passos, antes de tornar a cair de banda. A aspiração nos lados do corpo diminuiu... diminuiu... e parou. Ele estava morto. Carune sentiu um calafrio. Voltou, pegou outro rato e o empurrou pela metade no portal, a cabeça primeiro. Viu-o reaparecer no outro lado, apenas a cabeça... depois o pescoço e o peito. Cautelosamente, afrouxou a pressão no corpo do rato, pronto a agarrá-lo, se ficasse arisco. Não ficou. Apenas permaneceu ali, metade em um lado do celeiro, metade no outro. Carune correu para o Portal Dois. O rato estava vivo, porém seus olhos rosados haviam ficado vidrados e apáticos. Os bigodes não se moviam. Dando volta ao portal, Carune teve uma visão espantosa; como vira o lápis cortado ao meio, assim via o rato. Via as vértebras de sua pequenina espinha terminarem abruptamente em redondos círculos brancos; viu seu sangue se movendo nos vasos; viu o tecido se movendo suavemente com a maré da vida, em torno de seu minúsculo esôfago. Se aquilo não servisse para nada mais, pensou (e escreveu mais tarde, em seu artigo para Mecânica Popular), pelo menos seria uma formidável ferramenta para diagnósticos. Então, percebeu que o movimento de maré nos tecidos havia cessado. O rato tinha morrido. Carune empurrou o rato pelo focinho, não gostando da sensação daquilo, e o deixou cair no saco de papel, com os companheiros. Chega de ratos brancos, decidiu. Os ratos morrem. Morrem quando fazem a travessia de corpo inteiro, e morrem quando só fazem metade da travessia, com a cabeça primeiro. Fazendo metade da travessia, com as ancas primeiro, eles permanecem espertos. Diabo, o que há aqui? Imput sensorial, pensou, quase ao acaso. Quando atravessam, eles vêem alguma coisa... ouvem alguma coisa... tocam alguma coisa... Céus, talvez até cheirem alguma coisa... que literalmente os mata. O que será? Ele não fazia a menor idéia – mas pretendia descobrir. Ainda dispunha de quarenta minutos, antes que COMLINK lhe fechasse a fonte de dados básicos. Desatarrachou o termômetro da parede ao lado da porta de sua cozinha, trotou de volta ao celeiro com ele e o colocou através dos portais. O termômetro marcava 83.° F; chegou do outro lado marcando os mesmos 83° F. Carune vasculhou o aposento sobressalente, onde guardava alguns brinquedos para distrair os netos. Entre eles, encontrou um pacote de bolas de gás. Soprou uma, amarrou-a e a passou pelo portal. Ela chegou inteira e perfeita – um começo na resposta à sua pergunta sobre uma mudança súbita de pressão, de algum modo causada pelo que já pensava como o processo Excursional. Faltando cinco minutos para a hora fatal, ele correu até sua casa e apanhou o aquário com seus peixes dourados (no interior, Percy e Patrick agitavam as caudas e nadavam inquietos). Correu de volta ao celeiro, e lá passou o aquário através do Portal Um. Correu até o Portal Dois, onde seu aquário estava sobre o caixote. Patrick flutuava de ventre para cima; Percy nadava indolente, perto do fundo do aquário, como que estonteado. Um momento depois, também boiava de barriga para cima. Carune estendia o braço para apanhar o aquário, quando Percy teve um leve movimento de cauda e reiniciou seu lânguido nadar. Lentamente, pareceu eliminar qualquer efeito havido e, quando Carune retornou da Clínica Veterinária de Mosconi, às nove daquela noite, Percy parecia tão animado como sempre. Patrick estava morto. Carune deu a Percy uma ração dupla de alimento para peixes e a Patrick um sepultamento de herói, no jardim. Depois que o computador ficou fechado para ele por aquele dia, Carune decidiu ir de carona ao encontro de Mosconi. Assim, às quatro e quinze daquela tarde, estava parado no acostamento da Estrada 26, de calças jeans e um paletó esporte simples, com o polegar à mostra e um saco de papel na outra mão. Por fim, um rapazola dirigindo um Chevette não muito maior do que uma lata de sardinhas, parou junto dele e Carune entrou. – O que tem nesse saco, amigo? – Um punhado de ratos mortos – respondeu Carune. Eventualmente, outro carro parou. Quando o fazendeiro atrás do volante o interrogou sobre o saco, ele lhe disse que levava dois sanduíches. Mosconi dissecou um dos ratos imediatamente e concordou em dissecar os outros mais tarde, depois dizendo os resultados por telefone. A conclusão inicial não foi muito encorajadora; até onde o veterinário podia dizer, o rato que abrira estava perfeitamente saudável, excetuando-se o fato de encontrar-se morto. Deprimente. – Victor Carune era excêntrico, mas não um tolo – disse Mark. Os atendentes da Excursão agora estavam bem perto e ele supôs que precisaria apressar-se... ou terminaria sua história na Sala do Despertar, na Cidade Whitehead. – Tomando carona ao voltar para casa aquela noite – e ele teve que fazer a pé a maioria do trajeto, segundo diz a história – percebeu que talvez houvesse resolvido um terço da crise de energia, em uma só penada. Todas as mercadorias que tinham sido transportadas por trem, caminhão, barco e avião até aquele dia, podiam ser Excursionadas. Escrevia-se uma carta para um amigo em Londres, Roma ou Senegal, e ele a receberia logo no dia seguinte – sem que se precisasse queimar dez gramas de petróleo. Nós aceitamos isso como coisa certa, porém era uma grande coisa para Carune, acreditem. E para qualquer pessoa também. – Sim, mas o que aconteceu aos ratos, papai? – perguntou Ricky. – Foi a pergunta que Carune se fez muitas vezes – disse Mark – porque também percebeu que, se pessoas pudessem usar a Excursão, isso resolveria quase toda a crise de energia. Além disso, teríamos capacidade de conquistar o espaço. Em seu artigo na Mecânica Popular, ele declarou que até mesmo as estrelas finalmente poderiam ser nossas. E a metáfora que Carune usou, foi de cruzar-se um riacho raso sem molhar-se os sapatos. Apanha-se uma pedra grande, que é atirada ao riacho, depois outra pedra, atirada à frente da primeira, também dentro do riacho. Uma terceira pedra é atirada à frente da segunda, no riacho, até conseguir-se uma trilha de pedras por todo o trajeto, através do riacho... ou, neste caso, através do sistema solar, talvez mesmo da galáxia. – Não estou entendendo bem – disse Patty. – É porque você tem miolos de galinha – disse Ricky, debochado. – Não tenho! Papai, Ricky disse... – Crianças, parem com isso – disse Marilys, com delicadeza. – Carune previu com acerto o que tem acontecido – disse Mark. – Naves foguete de controle remoto, programadas para pousar, primeiro na lua, depois em Marte, a seguir em Vênus e nas luas exteriores de Júpiter... em realidade, programadas apenas para efetuarem uma coisa, após o pouso... – Instalar uma estação-Excursão para astronautas – disse Ricky. Mark assentiu. – E, atualmente, há postos científicos avançados por todo o sistema solar. Um dia, muito depois de havermos morrido, é possível, inclusive, que haja outro planeta para nós. Temos naves-Excursão a caminho de quatro diferentes sistemas estelares, com seus próprios sistemas solares... porém ainda vão demorar muito, muitíssimo tempo a chegar lá. – Quero saber o que aconteceu aos ratinhos – disse Patty, impaciente. – Bem, eventualmente, o governo interveio na questão – continuou Mark. – Carune reteve as informações o mais que pôde, mas finalmente eles farejaram o ocorrido e aterraram em cima dele, com os dois pés. Carune passou a chefe nominal do projeto Excursão, até falecer dez anos mais tarde, porém a verdade é que nunca mais ficou encarregado do mesmo. – Puxa! – exclamou Ricky. – Coitado dele! – Pois virou um herói – disse Patrícia. – Está em todos os livros de História, como o Presidente Lincoln e o Presidente Hart. Tenho certeza de que isso é um grande consolo para ele... onde quer que esteja, pensou Mark, e então prosseguiu, omitindo cuidadosamente as partes mais cruas. Tendo sido encostado à parede pela crise energética em espiral ascendente, o governo entrou realmente com os dois pés na questão. Eles queriam a Excursão funcionando em base rentável o mais breve possível, isto é, ontem. Enfrentando o caos econômico e um provável, crescente quadro de anarquia e fome maciça na década de 90, somente um desesperado patrocínio de causa fez com que protelassem a proclamação da Excursão, antes que fosse concluída uma exaustiva análise espectográfica dos artigos que haviam Excursionado. Encerradas as análises que não revelaram modificações na estrutura dos artefatos Excursionados – foi anunciada a existência da Excursão, com aplausos internacionais. Por uma vez demonstrando inteligência (afinal de contas, a necessidade é mãe da invenção), o governo dos E.U.A. colocou Young e Rubicam incumbidos das relações públicas. Foi aí que começou o mito fabricado em torno de Victor Carune, um homem idoso e um tanto peculiar, que tomava banho talvez duas vezes na semana e só trocava de roupas quando se lembrava disso. Young e Rubicam, juntamente com as agências que os seguiam, transformaram Carune em uma mescla de Thomas Edison, Eli Whitney, Pecos Bill e Flash Gordon. O humor negro em tudo isto (e Mark Oates não transmitiu esta parte à família), era que Victor Carune podia, inclusive, estar morto ou insano; dizem que a arte imita a vida, e Carune estaria familiarizado com a novela de Robert Heinlein, sobre os sósias de personalidades, aparecendo aos olhos do público. Victor Carune era um problema; um importuno problema que não cessava. Ele era um tagarela andarilho, um remanescente dos Ecológicos Anos Sessenta uma época em que ainda havia suficiente energia flutuando no ambiente, permitindo o luxo de caminhadas. Por outro lado, aqueles eram os Irritantes Anos Oitenta, com nuvens de carvão tisnando o céu e uma longa faixa do litoral californiano destinada a ficar desabitada por talvez sessenta anos, devido a um "desvio" nuclear. Victor Carune permaneceu um problema até cerca de 1991 – e então se tornou uma pessoa não questionante, sorridente, tranqüila, avoenga; uma figura que os filmes dos noticiários mostravam acenando dos pódios. Em 1993, três anos antes de falecer oficialmente, ele desfilou no carro da paz, na Parada do Torneio de Rosas. Intrigante. E um tanto sinistro. Os resultados da proclamação da Excursão – do funcionamento do teletransporte – a 19 de outubro de 1988, foi um golpe de excitamento mundial e revolução econômica. Nos mercados financeiros mundiais, o surrado e velho dólar americano disparou repentinamente através do teto. Pessoas que haviam comprado ouro a oitocentos e seis dólares uma onça, viram subitamente que uma libra de ouro (mais ou menos meio quilo) lhes daria algo menos de mil e duzentos dólares. No ano entre a proclamação da Excursão e as primeiras Estações-Excursão em funcionamento, em Nova York e Los Angeles, o mercado de ações subiu pouco mais de mil pontos. O preço do petróleo caiu somente setenta centavos por barril, mas por volta de 1994, com Estações-Excursão entrecruzando os E.U.A. nos pontos de pressão em setenta cidades importantes, a OPEP cessara de existir e o preço do petróleo começou a cair. Em 1998, com Estações na maioria das cidades do mundo livre e com mercadorias Excursionadas rotineiramente entre Tóquio e Paris, Paris e Londres, Londres e Nova York, Nova York e Berlim, o petróleo caíra para quatorze dólares o barril. Em 2006, quando as pessoas finalmente começaram a usar a Excursão em uma base regular, o mercado de ações se fixara a cinco mil pontos acima de seus níveis de 1987, o petróleo era vendido a seis dólares o barril e as companhias petrolíferas tinham começado a mudar de nome. A Texaco se tornou Texaco Petróleo/Água, enquanto a Mobil passou a ser Mobil Hidro-2-Ox. Em 2045, a prospecção de água se tornou o grande jogo, ao passo que o petróleo recuara para o que havia sido em 1906: um brinquedo. – E quanto aos ratinhos, papai? – perguntou Patty, impacientemente. – O que aconteceu com os ratinhos? Mark decidiu que agora talvez fosse viável e chamou a atenção de seus filhos para os atendentes da Excursão, que aplicavam o gás a apenas três corredores deles. Ricky apenas assentiu, mas Patty pareceu perturbada, quando uma senhora de cabeça raspada e pintada, como ditava a moda, tomou uma tragada da máscara de borracha e caiu inconsciente. – Não podemos Excursionar quando acordados, não é, papai? – perguntou Ricky. Mark assentiu e sorriu tranqüilizadoramente para Patricia. – Carune percebeu isso, antes mesmo que o governo assumisse a situação – disse ele. – E como foi que o governo assumiu a situação, Mark? – perguntou Marilys. Mark sorriu. – Graças ao tempo do computador – disse. – Os dados básicos. Aquilo era a única coisa que Carune não podia pedir, tomar emprestado ou roubar. O computador manejava a real transmissão de partículas – bilhões de peças de informação. Ainda é o computador, você sabe, que garante a integridade física da pessoa, isto é, que ela não ficará com a cabeça em algum ponto no meio do estômago. Marilys estremeceu. – Não tenho receio – disse ele. – Nunca houve uma situação semelhante, Mare. Nunca. – Sempre há uma primeira vez – murmurou ela. Mark olhou para Ricky. – Como é que ele soube? – perguntou ao filho. – Como é que Carune descobriu que as pessoas tinham que estar adormecidas, Ricky? – Quando colocou os ratos de costas – disse Ricky lentamente – eles ficaram bem. Pelo menos, enquanto não os atravessou de todo. Eles ficaram apenas – bem, confusos – quando Carune os colocou com a cabeça em primeiro lugar. Certo? – Certo – respondeu Mark. Os atendentes da Excursão se moviam agora, empurrando sua silenciosa mesinha rolante do esquecimento. Não haveria tempo dele contar tudo; talvez até fosse melhor assim. – Naturalmente, não foram necessárias muitas experiências para esclarecer-se o que acontecia. A Excursão liquidou toda a atividade dos caminhões de carga, crianças, mas pelo menos afastou a pressão de cima dos pesquisadores... Sim. Caminhar se tornara um luxo novamente e os testes haviam prosseguido por mais de vinte anos, embora as primeiras experiências de Carune com ratos drogados o tivessem convencido de que animais inconscientes não estavam sujeitos ao que, depois disso, ficou conhecido para sempre como Efeito Orgânico ou, mais simplesmente, Efeito Excursão. Ele e Mosconi tinham drogado vários ratos, que foram passados pelo Portal Um e recuperados no outro lado. Ansiosos, esperaram que suas cobaias acordassem de novo... ou morressem. Elas haviam acordado e, após um breve período de recuperação, retomaram suas vidas de camundongos – comendo, copulando, brincando e defecando – sem quaisquer efeitos prejudiciais. Aqueles ratos foram os primeiros, em várias gerações, estudados com grande interesse. Não apresentaram nenhum efeito pernicioso a longo prazo. Tampouco morreram mais cedo, seus filhotes não nasceram com duas cabeças ou pelagem verde, estes também não apresentando nenhum efeito negativo a longo termo. – Quando foi que eles começaram com pessoas, papai? – perguntou Ricky, embora certamente já houvesse aprendido isso na escola. – Conte esta parte! – Eu quero saber o que aconteceu aos ratinhos! – insistiu Patty. Embora os atendentes da Excursão agora houvessem atingido o início de seu corredor (eles se achavam quase no foral), Mark Oates fez uma pausa momentânea para refletir. Sua filha, menos informada, assim mesmo ouvira com atenção e tinha feito a pergunta certa. Portanto, ele preferiu responder à pergunta do filho. Os primeiros Excursionistas humanos não haviam sido astronautas nem pilotos de provas, mas prisioneiros voluntários, nem ao menos selecionados com qualquer interesse particular em sua estabilidade psicológica. De fato, foi opinião dos cientistas, então encarregados (Carune não estava entre eles; transformara-se no que é comumente chamado um chefe titular), que quanto mais instáveis eles fossem, tanto melhor; se um espástico mental suportava a travessia e a encerrava perfeito – ou, pelo menos, não pior do que era antes – então o processo provavelmente era seguro para executivos, políticos e modelos de moda do mundo. Meia dúzia desses voluntários foi levada a Province, em Vermont (um lugar que, desde então, ficou tão famoso quanto havia sido Kitty Hawk, na Carolina do Norte), onde eles receberam a aplicação do gás e foram passados através dos portais, colocados exatamente a três quilômetros de distância entre si, um por um. Mark contou isto aos filhos porque, naturalmente, todos os seis voluntários terminaram a prova sentindo-se bem, em excelente estado, obrigado. Ele não lhes falou no implicado sétimo voluntário. Esta figura, que poderia ter sido real, um mito ou (mais provavelmente) uma combinação dos dois, inclusive tinha nome: Rudy Foggia. Supunha-se que Foggia era um assassino confesso, condenado à morte no estado da Flórida, por haver assassinado quatro pessoas idosas, em um jogo de bridge em Sarasota. De acordo com relatos apócrifos, as forças combinadas da Central Intelligence Agency (CIA) e do Effa Bee Eye (FBI) fizeram a Foggia numa oferta única, pegar-ou-largar, em-absoluto-não-repetida. Fazer a Excursão plenamente desperto. Se você sair dela em perfeitas condições, receberá o seu perdão, assinado pelo Governador Thurgood. Deixará a prisão, livre para seguir a única e Verdadeira Cruz ou liquidar mais alguns velhos jogando bridge, em suas calças amarelas e sapatos brancos. Faça a travessia, saia dela morto ou doido, tetas vigorosas. Como se presume que a gata falou. O que responde? Sabendo que a Flórida era um estado que levava a sério a pena de morte e, tendo sabido por seu advogado, que com toda probabilidade ele seria o próximo a sentar-se na Velha Cadeira, Foggia disse, tudo bem. No Grande Dia, no verão de 2007, cientistas suficientes para lotar uma banca de jurados (com mais cinco ou seis sobressalentes) achavam-se presentes para testemunhar o que ocorreria, mas se a história de Foggia era real – e Mark Oates acreditava que provavelmente fosse – ele duvidava que a notícia transpirara de qualquer dos cientistas. O mais crível é que se ficara sabendo do sucedido por algum dos guardas que tinham voado com Foggia de Raiford a Montpelier e depois o escoltado de Montpelier a Province, em um veículo blindado. – Se eu sair disto vivo – diz-se que Foggia falou – quero jantar um frango, antes de acabar com esta espelunca. Ele então cruzou o Portal Um, reaparecendo imediatamente no Portal Dois. Surgiu vivo, mas Rudy Foggia não estava em condições de jantar seu frango. No espaço de tempo em que fez a Excursão através dos três quilômetros (indicado como 0,000000000067 de segundo, por computador), o cabelo de Foggia ficou branco como neve. Seu rosto não mudara, em qualquer sentido físico – não mostrava rugas, papada e nem estava debilitado – mas dava a impressão de uma grande, quase incrível idade. Foggia saiu pelo portal arrastando os pés, os olhos arregalados e opacos, a boca torcendo-se, as mãos estendidas à sua frente. Dentro em pouco, ele começou a babar. Os cientistas que se tinham reunido em torno dele, recuaram e, não, Mark duvidava que algum deles houvesse comentado o fato. Eles sabiam sobre os ratos, afinal de contas, sabiam sobre as cobaias e os hamsters; de fato, sobre qualquer animal com cérebro maior do que a minhoca mediana. Deviam ter-se sentido algo semelhantes àqueles cientistas alemães, que tentaram impregnar mulheres judias com o esperma de pastores alemães. – O que aconteceu? – bradou um dos cientistas (diz-se que ele bradou). Foi a única pergunta a que Foggia teve chance de responder. – Lá é a eternidade – disse ele, e caiu morto, vitimado pelo que foi diagnosticado como um ataque cardíaco maciço. Os cientistas lá reunidos ficaram com seu cadáver (o qual foi caprichosamente cuidado pela CIA e pelo Effa Bee Eye) e aquela estranha, terrível declaração agonizante: Lá é a eternidade. Papai, eu quero saber o que aconteceu com os ratos – repetiu Patty. O único motivo que lhe permitira fazer novamente a pergunta era porque o homem do terno caro e os sapatos de brilho-eterno parecia haver-se transformado em um problema para os atendentes da Excursão. Em realidade, ele não queria tomar o gás e procurava disfarçar a recusa com uma conversa incessante, as fanfarronices de um garoto metido a valente. Os atendentes cumpriam sua missão o melhor que podiam – sorrindo, adulando, persuadindo – mas aquilo os retardava. Mark suspirou. Ele iniciara o assunto – apenas como uma forma de distrair os filhos daquelas festividades pré-Excursão, sem dúvida, mas o iniciara. Agora, era de supor que deveria encerrá-lo o mais verdadeiramente possível, sem alarmá-los ou perturbá-los. Não lhes mencionaria, por exemplo, o livro de C. K. Summers, A política da Excursão, que continha uma seção intitulada "A Excursão confidencialmente", um compêndio dos mais críveis rumores sobre a Excursão. Estava lá a história de Rudy Foggia, aquele dos assassinatos no clube de bridge e do frango não comido ao jantar. Também havia o histórico dos casos de uns trinta (ou mais... ou menos... ou quem sabe) voluntários, bodes expiatórios ou loucos, que haviam Excursionado inteiramente despertos, no correr dos últimos trezentos anos. Em sua maioria, chegaram mortos ao outro lado. Os restantes tinham ficado irremediavelmente loucos. Em certos casos, o ato de reemergirem realmente os deixara em um estado de choque que levara à morte. Aquela seção do livro de Summer, relatando rumores e histórias apócrifas sobre a Excursão, continha também outros perturbadores informes: aparentemente, a Excursão havia sido várias vezes usada como meio para o assassinato. No caso mais famoso (e único documentado), que ocorrera apenas trinta anos antes, um pesquisador da Excursão, chamado Lester Michaelson havia amarrado a esposa com os Cordões-sonho de plexiplast da filha de ambos, e a empurrara, com ela gritando, pelo portal da Excursão em Silver City, Nevada. Contudo, antes de fazer isso, Michaelson apertara o botão Nada, no painel de seu aparelho, apagando cada e todas as centenas de milhares de portais possíveis, através dos quais a Sra. Michaelson poderia ter emergido – qualquer lugar, desde a vizinha cidade de Reno à Estação-Excursão experimental em To, uma das luas jupiterianas. Assim, a Sra. Michaelson permaneceria eternamente Excursionando em algum ponto além, lá fora, no ozônio. O advogado de Michaelson, depois que ele foi declarado sadio e capaz de enfrentar um julgamento pelo que havia feito (dentro dos estreitos limites da lei, talvez ele fosse são de espírito, mas em qualquer sentido prático, Lester Michaelson era tão louco como um chapeleiro), apresentou uma nova modalidade de defesa: seu cliente não podia ser julgado por assassinato, porque ninguém podia provar, conclusivamente, que a Sra. Michaelson estava morta. Isto havia evocado o terrível espectro da mulher, desincorporada, mas de certo modo ainda consciente, gritando no limbo..: para sempre. Michaelson foi condenado e executado. Em adição, sugeria Summers, a Excursão tinha sido usada por vários ditadores baratos que queriam livrar-se de dissidentes e adversários políticos; certas pessoas acreditavam que a Máfia possuía suas próprias Estações-Excursão ilegais, ligadas ao computador central de Excursão, através de suas conexões com a CIA. Summers dava a entender que a Máfia usara a capacidade-Nada da Excursão, a fim de livrar-se de corpos que já estavam mortos, ao contrário do da Sra. Michaelson. Vista sob este ponto de vista, a Excursão se tornara a máquina definitiva de Jimmy Hoffa, muito melhor do que a cascalheira ou pedreira locais. Tudo isto levara às conclusões e teorias de Summers sobre a Excursão e, naturalmente, também à persistente pergunta de Patty sobre os camundongos. – Bem – disse Mark lentamente, enquanto a esposa lhe fazia sinais com os olhos para que fosse cuidadoso – até hoje ninguém sabe ao certo, Patty. Contudo, todas as experiências com animais – incluindo-se os ratinhos – pareciam levar à conclusão de que, embora a Excursão seja quase instantânea fisicamente, demora um longo, longo tempo mentalmente. – Eu não entendo isso – replicou Patty, taciturnamente. – Sabia que não ia entender. Ricky, no entanto, olhava pensativo para o pai. – Eles continuaram pensando – disse ele. – Os animais usados como cobaias. E nós também pensaremos, se não ficarmos inconscientes. – Certo – respondeu Mark. – É o que agora acreditamos. Havia algo surgindo nos olhos de Ricky. Medo? Excitamento? – Não é apenas um teletransporte, certo, papai? Deve ser alguma espécie de distorção do tempo. Lá é a eternidade, pensou Mark. – De certa forma – respondeu ele. – Contudo, essa é uma expressão de histórias em quadrinhos – parece correta mas, em realidade, nada significa, Ricky. Parece revolver-se em torno da idéia de consciência e do fato de que a consciência não se divide em partículas – ela permanece inteira e constante. Também encerra algum peculiar senso de tempo. Entretanto, ignoramos como a consciência pura mediria o tempo ou mesmo se tal conceito tem algum sentido para a mente pura. Aliás, nem mesmo podemos conceber o que seria mente pura. Mark se calou, perturbado pelos olhos do filho, de repente tão aguçados e curiosos. Ele entende, mas não compreende, pensou. A mente pode ser nosso melhor amigo; ela nos mantém satisfeitos, mesmo nada havendo para ler, nada a fazer. Entretanto, também pode voltar-se contra nós, se mantida sem imput por tempo demasiado. Pode voltar-se contra nós, isto querendo dizer que se volta contra si mesma, barbariza-se, talvez se consuma a si própria, em um ato inconcebível de autocanibalismo. Quanto tempo ficaria lá, em termos de anos? 0,000000000067 de segundo para o corpo Excursionar, mas quanto tempo para a consciência não dividida em partículas? Cem anos? Mil? Um milhão? Um bilhão? Quanto tempo a sós com seus pensamentos, em um interminável campo branco? E então, passado um bilhão de eternidades, o abrupto retorno à luz, à forma e ao corpo. Quem não enlouqueceria? – Ricky... – começou ele, mas os atendentes da Excursão chegaram com sua mesinha rolante. – Estão prontos? – perguntou um deles. Mark assentiu. – Estou com medo, papai – disse Patty, em um fio de voz. – Vai doer? – Não, meu bem, é claro que não dói. – falou Mark, em voz calma o suficiente, embora o coração batesse um pouco mais rápido – era sempre assim, mesmo sendo aquela mais ou menos sua vigésimaquinta Excursão. – Serei o primeiro e assim você verá como é fácil. O atendente da Excursão olhou inquisitivamente para ele. Mark assentiu e esboçou um sorriso. A máscara desceu. Mark a tomou nas próprias mãos e respirou fundo no escuro. * * * A primeira coisa de que teve consciência foi do negríssimo céu marciano, como visto através do topo da abóbada que circundava a Cidade Whitehead. Era noite ali e as estrelas esparramavam-se com um uivo fulgor, desconhecido na terra. A segunda coisa que percebeu foi uma espécie de rebuliço na sala de recuperação – murmúrios, depois gritos, então um uivo agudo. Oh, meu Deus, foi Marilys! pensou, enquanto saltava estonteado de seu divã, lutando com as ondas da vertigem. Houve outro grito, e viu atendentes da Excursão correndo para os divãs que eles ocupavam, seus vivos macacões vermelhos esvoaçando em torno dos joelhos. Marilys deu alguns passos cambaleantes em direção a ele, apontando. Depois tornou a gritar e caiu ao chão. O divã da Excursão desocupado ao seu lado, rolou lentamente corredor abaixo, quando ela tentou agarrar-se a ele com mão trêmula. Mark, no entanto, já vira o que ela apontava. O que havia observado antes nos olhos de Ricky não tinha sido medo, mas excitamento. Devia ter sabido, porque conhecia bem o filho – Ricky, que caíra do galho mais alto da árvore em seu quintal de Schenectady, quando contava apenas sete anos, tendo quebrado o braço (e tivera sorte, pois fora apenas o braço que quebrara); Ricky, que ousava ir mais depressa e mais longe em seu skate do que qualquer outro garoto da vizinhança; Ricky, que era sempre o primeiro a enfrentar qualquer desafio. Ricky e medo não se davam bem. Até agora. Ao lado de Ricky, sua irmã ainda dormia misericordiosamente. A coisa que havia sido seu filho saltou e contorceu-se no divã-Excursão, um garoto de doze anos de idade, de cabelos brancos como a neve e olhos que eram incrivelmente velhos, as córneas apresentando um amarelado doentio. Ali estava uma criatura mais velha do que o tempo, mascarada como menino; no entanto, ela quicava e se torcia com horrendo, obsceno regozijo. Sua garrulice chocante e lunática fizera com que os atendentes da Excursão recuassem, tomados de horror. Alguns deles fugiram dali, embora houvessem sido justamente treinados para lidar com tal inconcebível eventualidade. As pernas jovens-velhas estremeceram e contorceram-se. Mãos em garras batiam, torciam e dançavam no ar; depois desceram repentinamente e a coisa que havia sido seu filho começou a dilacerar o próprio rosto. – É mais longa do que se pensa, papai! – cacarejou a criatura. – Mais longa do que se pensa! Eu prendi a respiração, quando eles me aplicaram o gás! Eu queria ver! Eu vi! Eu vi! É mais longa do que se pensa! Cacarejando e guinchando, a coisa sobre o divã-Excursão subitamente arrancou os olhos com as garras. O sangue jorrou. A sala de recuperação era agora um aviário de vozes gritando agudamente. – Mais longa do que se pensa, papai! Eu vi! Eu vi! Longa Excursão! Mais longa do que se pensa... A criatura ainda disse outras coisas, antes que os atendentes da Excursão finalmente conseguissem levá-la dali, rodando seu divã a toda rapidez, enquanto ela gritava e fincava os dedos engalfinhados nas órbitas dos olhos que tinham visto o para sempre e eterno oculto. Ela disse outras coisas e então começou a gritar, mas Mark Oates não ouviu, porque a essa altura também estava gritando.
 

Rust Hill Copyright © 2010 | Designed by: compartidisimo