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sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Posto de parada -




Ele imaginava que, em algum lugar entre Jacksonville e Sarasota,
tinha feito uma versão literária do velho truque “Clark Kent trocando de roupa na cabine telefônica”, mas não sabia bem onde ou como. O que sugeria que não foi assim tão dramático. Então será que tinha importância afinal?
Às vezes ele dizia a si mesmo que não, que essa história toda de Rick Hardin/John Dykstra não passava de uma armação, pura conversa de assessoria de imprensa, igual a Archibald Bloggert (ou qualquer que tivesse sido o seu nome real) atuando como Cary Grant ou Evan Hunter (cujo nome de batismo era Salvatore sabe-se lá o quê) escrevendo como Ed McBain. E esses caras tinham servido de inspiração para ele... juntamente com Donald E. Westlake, que escrevia romances policiais baratos sob o nome Richard Stark, e K. C. Constantine, que era na verdade... bem, ninguém sabia ao certo, não é mesmo? O mesmo acontecia com o misterioso Mr. B. Traven, que escrevera O Tesouro de Sierra Madre. Ninguém sabia ao certo, e isso era grande parte da diversão.
Nome, nome, o que há num simples nome?
Quem, por exemplo, era ele na viagem que fazia duas vezes por semana de volta para Sarasota? Era Hardin quando saiu do Pot o’ Gold em Jax, é claro, sem dúvida. E seria Dykstra quando entrasse em sua casa à beira do canal na Macintosh Road, obviamente. Mas quem era ele na Rota 75, enquanto seguia de cidade em cidade sob as luzes brilhantes da autoestrada? Hardin? Dykstra? Ninguém? Será que havia algum momento mágico em que o lobisomem literário que ganhava uma grana preta se transformava de volta no professor de inglês inofensivo cuja especialidade era poetas e romancistas americanos do século XX? E teria isso importância, desde que estivesse em dia com Deus, a Receita Federal e um ou outro jogador de futebol americano que por ventura fizesse um dos dois cursos de introdução que ele dava?
Nada disso tinha importância ali, logo ao sul de Ocala. O importante era que ele precisava mijar como um cavalo de corrida, fosse quem fosse. Tinha bebido duas cervejas a mais do que o seu limite habitual no Pot o’ Gold (talvez três) e colocado o controle de velocidade do Jaguar em 105 km/h, pois não queria ver nenhuma luz estroboscópica vermelha no seu retrovisor naquela noite. Ele podia ter comprado o Jag com livros escritos sob o pseudônimo Hardin, mas era como John Andrew Dykstra que vivia a maior parte de sua vida, e seria sobre esse nome que a lanterna brilharia se lhe pedissem a carteira de motorista. E Hardin pode ter bebido as cervejas no Pot o’ Gold, mas, se um patrulheiro rodoviário da Flórida sacasse o temido bafômetro de seu estojinho de plástico azul, seriam as moléculas intoxicadas de Dykstra que iriam parar dentro das entranhas inteligentes da bugiganga. E, numa noite de quinta-feira de junho, ele seria presa fácil independentemente de quem fosse, pois todos os turistas haviam voltado para Michigan e ele estava praticamente sozinho na I-75.
Mesmo assim, havia um problema fundamental em relação à cerveja que qualquer estudante de graduação entendia: o contrato que você faz com ela não é de compra, é de aluguel. Por sorte, havia um posto de parada a apenas 10 ou 11 quilômetros ao sul de Ocala, e lá ele daria um jeito naquilo.
Enquanto isso, no entanto, quem era ele?
Certamente tinha vindo a Sarasota 16 anos antes como John Dykstra, e era com esse nome que lecionara Inglês no campus de Sarasota da FSU desde 1990. Então, em 1994, decidiu parar de dar cursos de verão e em vez disso se arriscar a escrever um romance de mistério. Não havia sido ideia sua. Ele tinha um agente em Nova York, não um dos figurões, mas um cara honesto o suficiente e com um histórico aceitável, que conseguira vender quatro dos contos do seu novo cliente (escritos como Dykstra) para várias revistas literárias que pagaram umas poucas centenas de dólares. O nome do agente era Jack Golden e, embora fosse todo elogios para os contos, ele considerava os cheques que resultaram deles “uma merreca”. Havia sido Jack quem apontara que todos os contos publicados por John Dykstra tinham “uma boa linha narrativa” (que, até onde Johnny sabia, no dialeto dos agentes literários significava enredo) e sugerira que seu novo cliente poderia fazer 40 mil ou 50 mil dólares de uma só vez escrevendo romances de mistério de 100 mil palavras.
— Você poderia fazer isso em um verão se conseguisse pendurar o chapéu em algum lugar e metesse a cara — disse ele para Dykstra em uma carta. (Eles ainda não tinham progredido para o telefone e o fax àquela altura.) — E seria o dobro do que você ganha dando aula nos cursos de junho e agosto lá na Universidade de Mangrove. Se quiser tentar, meu amigo, a hora é essa... antes de arranjar uma esposa e dois filhos e meio.
Não havia esposa em potencial alguma no horizonte (assim como não havia agora), mas Dykstra entendera o que Jack queria dizer; arriscar a sorte não ficava mais fácil à medida que você envelhecia. E mulher e filhos não eram as únicas responsabilidades que uma pessoa assumia com o passar silencioso do tempo. Sempre havia a sedução dos cartões de crédito, por exemplo. Cartões de crédito enchem o casco do seu navio de cracas e fazem você ir mais devagar. Cartões de crédito são agentes da norma e trabalham em favor de uma vida sem surpresas.
Quando o contrato dos cursos de verão chegou em janeiro de 1994, ele o devolveu sem assinar para o chefe de departamento com um pequeno bilhete explicativo: Pensei que seria melhor eu tentar escrever um romance este verão.
A resposta de Eddie Wasserman tinha sido cordial, porém firme: Tudo bem, Johnny, mas não posso garantir que a vaga estará disponível no próximo verão. A pessoa que assume o curso sempre tem o direito de recusar primeiro.
Dykstra chegara a pensar no assunto, mas não por muito tempo: àquela altura, tinha uma ideia. Melhor ainda, tinha um personagem: O Cão, pai literário dos Jaguares e das casas na Macintosh Road, estava esperando para nascer, e Deus abençoe o seu coração homicida.
À sua frente ele via a seta branca na placa azul que reluzia sob os seus faróis, a rampa que saía da estrada fazendo uma curva para a esquerda e os postes com lâmpadas de sódio de alta potência. Elas iluminavam de tal forma o asfalto que a rampa parecia parte de um palco de teatro. Ele ligou a seta, desacelerou para 65 km/h e saiu da interestadual.
Na metade da subida, a rampa bifurcava: caminhões e trailers para a direita, quem estivesse dirigindo um Jaguar, seguir reto. O posto de parada ficava 50 metros depois da bifurcação, um prédio baixo de blocos de concreto que também parecia um palco sob as luzes fortes. O que seria ele em um filme? Uma base de lançamento de mísseis no cafundó do Judas, sendo que o sujeito no comando sofre de algum tipo de doença mental cuidadosamente escondida (mas progressiva). Ele vê russos por toda parte, russos saindo das malditas paredes... ou então terroristas da Al Qaeda, o que provavelmente estaria mais na moda. Os russos já não serviam mais para vilões em potencial, a não ser que estivessem traficando drogas ou prostitutas adolescentes. E, de todo modo, o vilão não tem importância, é tudo fantasia, mas ainda assim o dedo do cara está coçando para apertar o botão vermelho, e...
E ele precisava mijar, então, por favor, guarde a imaginação na gaveta por um tempo, obrigado. Além do mais, não havia lugar para o Cão numa história dessas. O Cão era mais um guerreiro urbano, como ele havia dito no Pot o’ Gold mais cedo naquela noite. (Boa frase, por sinal.) Mas a ideia do comandante louco da base de mísseis tinha o seu encanto, não tinha? Um cara bonitão... adorado pelos colegas... parece perfeitamente normal por fora.
Havia apenas um carro no estacionamento amplo àquela hora, um daqueles PT Cruisers que ele sempre achava engraçados — pareciam carrinhos de gângster de brinquedo da década de 1930.
Ele estacionou quatro ou cinco vagas depois do PT Cruiser, desligou o motor e então parou para dar uma conferida rápida no estacionamento deserto antes de sair. Não era a primeira vez que parava ali ao voltar do Pot, e certa vez tinha ao mesmo tempo achado graça e ficado apavorado ao ver um crocodilo se arrastando pelo asfalto vazio em direção aos pinheiros do outro lado do posto, parecendo um pouco um homem de negócios velho e acima do peso a caminho de uma reunião. Não havia crocodilo naquela noite, de modo que ele saiu, apontando seu chaveiro por sobre ombro e apertando o botão para trancar as portas do carro. Naquela noite, seria apenas ele e o sr. PT Cruiser. O Jag soltou um gorjeio obediente e por um instante ele viu sua sombra no breve lampejo dos faróis... mas de quem era ela? De Dykstra ou de Hardin?
De Johnny Dykstra, decidiu ele. Hardin tinha sumido àquela altura, deixado para trás a 50 ou 60 quilômetros dali. Porém aquela tinha sido a sua noite de fazer a breve (e em sua maior parte cômica) apresentação pós-jantar para o restante dos Florida Thieves, e ele achava que o sr. Hardin havia feito um belo trabalho, terminando com a promessa de mandar o Cão atrás de qualquer pessoa que não contribuísse generosamente com a instituição beneficente daquele ano, que calhava de ser a Sunshine Readers, uma organização sem fins lucrativos que fornecia textos e artigos em formato de áudio para acadêmicos cegos.
Ele atravessou o estacionamento até o prédio, os saltos de suas botas de caubói clicando no asfalto. John Dykstra jamais usaria jeans desbotados e botas de caubói em um evento social, especialmente se ele fosse o palestrante do evento em questão, mas Hardin era um carro envenenado de modelo bem diferente. Ao contrário de Dykstra (que se melindrava com facilidade), Hardin não dava muita bola para o que as pessoas achavam da sua aparência.
O edifício do posto de parada era dividido em três partes: o banheiro feminino à esquerda, o banheiro masculino à direita e um grande átrio no meio, com um balcão onde você podia apanhar panfletos sobre diversas atrações do centro e do sul da Flórida. Havia também máquinas de salgadinhos, duas máquinas de refrigerante e um dispenser automático de mapas que exigia um número ridículo de moedas. Ambos os lados da entrada baixa de blocos de concreto estavam cobertos de cartazes de crianças desaparecidas que sempre deixavam Dykstra arrepiado. Quantas das crianças naquelas fotos, ele sempre se perguntava, estariam enterradas no solo úmido e arenoso dos Glades ou alimentando os crocodilos daquela região pantanosa? Quantas cresciam acreditando que os vagabundos que as raptaram (e de quando em quando as molestavam ou prostituíam) eram seus pais ou mães? Dykstra detestava olhar para seus rostos desarmados e inocentes ou pensar no desespero que havia por trás dos valores absurdos das recompensas — 10, 20, 50 mil dólares, 100 mil (a última, por uma menina loira e sorridente de Fort Myers que tinha desaparecido em 1980 e que estaria no começo da meia-idade, se é que ainda estava viva... o que quase certamente não era o caso). Havia também um aviso informando ao público que era proibido remexer os latões de lixo, e outro dizendo que demorar mais de uma hora naquele posto de parada era proibido — ÁREA VIGIADA PELA POLÍCIA.
Quem iria querer se demorar aqui?, pensou Dykstra, escutando a brisa noturna farfalhar por entre as palmeiras. Um louco, eis quem iria querer. Uma pessoa para a qual um botão vermelho começaria a parecer atraente à medida que os meses e anos tediosos passavam ao som de caminhões de 16 rodas na faixa de ultrapassagem à uma da madrugada.
Ele dobrou em direção ao banheiro masculino e então se deteve no meio de um passo quando ouviu de repente uma voz de mulher, um pouco distorcida pelo eco, mas espantosamente próxima, vir de trás dele.
— Não, Lee — disse ela. — Não, querido, não faça isso.
Ouviu-se um tapa, seguido por um baque, um baque abafado de carne. Dykstra se deu conta de que estava escutando o som inconfundível de maus-tratos. Ele chegava a ver a marca vermelha da mão no rosto da mulher e sua cabeça, apenas ligeiramente amortecida pelos cabelos (loiros? pretos?), batendo contra a parede de azulejos bege. Ela começou a chorar. As lâmpadas de sódio eram fortes o bastante para Dykstra ver que seus braços tinham ficado arrepiados. Ele começou a morder o lábio inferior.
— Tu é uma puta de merda.
A voz de Lee era monótona, sonora. Era difícil saber por que dava para notar de cara que ele estava bêbado, pois cada palavra era articulada à perfeição. Mas dava, porque você já ouviu homens falando assim antes — em estádios de beisebol, em feiras de variedades, às vezes através de uma parede fina (ou do teto) de motel tarde da noite, com a lua já baixa no céu e os bares já fechados. A metade feminina da conversa — será que se podia chamar aquilo de conversa? — podia estar bêbada também, embora parecesse mais assustada.
Dykstra ficou parado ali, no limiar de um hall de entrada, encarando o banheiro masculino, suas costas viradas para o casal no banheiro das mulheres. Ele estava nas sombras, cercado dos dois lados por cartazes de crianças desaparecidas que farfalhavam baixinho, como folhagens de palmeira, sob a brisa noturna. Ficou esperando no mesmo lugar, torcendo para aquilo parar por ali. Mas é claro que não parou. Os versos de um cantor qualquer de música country lhe vieram à cabeça, sem sentido e agourentos: “Quando eu descobri que não prestava, já estava rico demais para tomar jeito.”
Ouviu-se outro tapa polpudo e outro grito da mulher. Houve um instante de silêncio, e então a voz do homem voltou a ressoar, e dava para notar que, além de estar bêbado, ele era ignorante; por conta da maneira como dizia tu é em vez de você é. Era possível saber um monte de coisas a respeito dele, na verdade: que costumava se sentar nos fundos da sala durante as aulas de Inglês no ensino médio; que bebia leite direto da embalagem quando chegava em casa do colégio; que abandonou a escola antes de se formar; que arranjou o tipo de trabalho em que precisava usar luvas e carregar um estilete no bolso de trás da calça. Não se devia fazer esse tipo de generalizações — era como dizer que todos os negros tinham ginga de nascença e todos os italianos choravam na ópera —, mas ali no escuro, às 11 da noite, cercado por cartazes de crianças desaparecidas que por algum motivo eram sempre impressos em papel rosa, como se essa fosse a cor dos desaparecidos, você sabia que era verdade.
— Tu é uma putinha de merda.
Ele tem sardas, pensou Dykstra. E a pele sensível ao sol. A pele queimada faz com que ele pareça sempre nervoso, e normalmente é assim mesmo que ele está. Ele bebe Kahlúa quando está com a carteira recheada, como se diz, mas no geral bebe cer...
— Lee, pare — disse a voz da mulher. Ela estava chorando àquela altura, implorando, e Dykstra pensou: Não faça isso, moça. Você não sabe que só piora as coisas? Não sabe que quando ele vê aquele filete de ranho pendendo do seu nariz isso só serve para deixá-lo mais irritado ainda? — Pare de me bater, não agu...
Whap!
E então outro baque e um grito agudo, quase um latido fino, de dor. O velho sr. PT Cruiser a estapeou outra vez com força o bastante para sua cabeça bater contra a parede de azulejos do banheiro, e como era mesmo aquela piada antiga? Por que a cada ano são 300 mil casos de maus-tratos contra a mulher nos Estados Unidos? Porque elas... não... aprendem... porra.
— Tu é uma puta.
Esse era o evangelho de Lee naquela noite, direto da Segunda Epístola aos Bebadonicenses, e o que era assustador naquela voz — o que Dykstra achou completamente aterrorizante — era a falta de emoção. Raiva teria sido melhor. Raiva teria sido mais seguro para a mulher. Raiva era como um gás flamejante — uma faísca poderia acendê-lo e consumi-lo em uma explosão rápida e espalhafatosa —, mas aquele cara era... meticuloso. Não bateria nela de novo e então pediria desculpa, talvez começando a chorar ao fazê-lo. Talvez tivesse feito isso em outras noites, mas não naquela. Naquela noite ele estava interessado na explosão mais demorada. Ave-Maria cheia de graça, me ajude a sair dessa enrascada.
O que eu faço agora? Qual é a minha função aqui? Será que tenho alguma?
Ele certamente não entraria no banheiro masculino para dar a longa e preguiçosa mijada que pretendia e estava louco para dar; seu saco estava encolhido como duas pedrinhas duras e a pressão nos rins tinha se espalhado tanto pelas suas costas quanto pelas pernas. Seu coração estava acelerado no peito, esmurrando-o a uma passada rápida que provavelmente se tornaria uma corrida ao som do próximo golpe. Só conseguiria mijar novamente dali a uma hora, por maior que fosse a sua vontade, e mesmo assim o xixi sairia em uma série de jatinhos insatisfatórios. E Deus, como ele gostaria que essa hora já tivesse passado, como gostaria de estar na estrada, a 100 ou 110 quilômetros dali!
O que você vai fazer se ele bater nela de novo?
Outra questão surgiu: o que ele faria se a mulher desse no pé e o sr. PT Cruiser fosse atrás dela? Havia apenas uma saída do banheiro feminino, e John Dykstra estava bem no meio dela. John Dykstra com as botas de caubói que Rick Hardin usara em Jacksonville, onde de duas em duas semanas um grupo de escritores de mistério — muitos deles mulheres gorduchas de terninhos pastel — se reunia para discutir técnicas narrativas, agentes, vendas e fofocar uns sobre os outros.
— Lee-Lee, não me machuque, está bem? Por favor, não me machuque. Por favor, não machuque o bebê.
Lee-Lee. Jesus chorou.
Ah, e ainda tem mais; mais essa para completar. O bebê. Por favor, não machuque o bebê. Bem-vindo ao canal A Vida como Ela É.
O coração disparado de Dykstra pareceu afundar alguns centímetros no peito. Ele tinha a sensação de estar parado naquele pequeno limiar de bloco de concreto há pelo menos vinte minutos, mas quando olhou para o relógio não ficou surpreso ao ver que nem mesmo quarenta segundos se haviam passado desde o primeiro tapa. Prova da natureza subjetiva do tempo e da estranha velocidade do pensamento quando a mente é colocada sob pressão sem aviso. Ele já havia escrito diversas vezes sobre as duas coisas. Imaginava que a maioria dos — abre aspas, fecha aspas — escritores de mistério tivesse feito o mesmo. Quando chegasse novamente a sua vez de palestrar para os Florida Thieves, talvez ele pudesse escolher isso como assunto e começar lhes contando sobre o incidente. E sobre como teve tempo para pensar em Segunda Epístola aos Bebadonicenses. Embora achasse que talvez fosse um pouco pesado para suas confraternizações quinzenais, um pouco...
Uma perfeita rajada de golpes interrompeu essa linha de pensamento. Lee-Lee tinha surtado. Dykstra escutou o som peculiar daqueles golpes com o assombro de um homem que compreende estar ouvindo sons dos quais jamais se esquecerá, não efeitos sonoros de cinema, mas um som de punhos batendo em um travesseiro de penas, surpreendentemente suave — na verdade, quase delicado. A mulher gritou uma vez de surpresa e outra de agonia. Depois disso, se viu reduzida a gritinhos ofegantes de dor e medo. Lá fora no escuro, Dykstra pensou em todos os anúncios públicos de tevê que já havia visto sobre prevenção da violência doméstica. Eles não faziam menção a isso, a como você conseguia ouvir o vento nas palmeiras em um ouvido (e o farfalhar dos cartazes de crianças desaparecidas, não nos esqueçamos disso) e aqueles pequenos grunhidos de dor e medo no outro.
Ele ouviu o barulho de pés se arrastando no piso de azulejo e soube que Lee (Lee-Lee, era como a mulher o chamara, como se um apelido carinhoso pudesse acalmar sua fúria) estava se aproximando. Como Rick Hardin, Lee usava botas. Os Lee-Lees do mundo geralmente preferiam calçar Georgia Giants. E mulheres mais novas. A mulher estava de tênis cano baixo, branco. Ele sabia.
— Puta, puta de merda, eu te vi falano com ele, mostrano os peito pra ele, tu é uma puta mermo...
— Não, Lee-Lee, eu nunca...
O som de outro golpe, e então uma expectoração rouca que não era nem masculina nem feminina. Um barulho de golfada. No dia seguinte, quem quer que limpasse aqueles banheiros encontraria vômito secando no chão e em uma das paredes de azulejo do toalete feminino, mas Lee e sua mulher ou namorada já estariam longe, e para o faxineiro seria apenas outra sujeira para limpar, a história do vômito ao mesmo tempo obscura e desinteressante, e o que Dykstra deveria fazer? Meu Deus, será que ele tinha coragem de entrar lá? Se não tivesse, Lee talvez acabasse de bater nela e se desse por satisfeito, mas se um estranho interferisse...
Ele mataria a nós dois.
Mas...
O bebê. Por favor, não machuque o bebê.
Dykstra cerrou os punhos e pensou: merda de canal A Vida como Ela É!
A mulher ainda vomitava.
— Para com isso, Ellen.
— Não consigo!
— Não? Então tá bom. Eu faço você parar. Sua... puta.
Outro whap! pontuou aquele puta. O coração de Dykstra se afundou mais ainda. Ele não achava que aquilo fosse possível. Dali a pouco estaria batendo na sua barriga. Se ao menos pudesse incorporar o Cão! Em um conto isso daria certo — ele vinha inclusive pensando sobre identidade antes de cometer o grande erro de entrar naquele posto de parada, e se aquilo não era o que os manuais de literatura chamavam de prenúncio, então o que seria?
Sim, ele poderia se transformar no seu matador, entrar no banheiro feminino, cobrir Lee de porrada e depois seguir seu caminho. Como Shane naquele filme antigo com Alan Ladd.
A mulher vomitou novamente, com o som de uma máquina transformando pedras em cascalho, e então Dykstra soube que não iria incorporar o Cão. O Cão era faz de conta. Aquela era a realidade, se desenrolando bem ali na sua frente como a língua de um bêbado.
— Faz isso de novo pra você ver só — incitou Lee, e dessa vez havia algo de mortífero em sua voz. Ele estava se preparando para ir até o fim. Dykstra estava certo disso.
Eu vou testemunhar no julgamento. E quando me perguntarem o que fiz para impedir, vou falar que não fiz nada. Vou falar que fiquei escutando. Que eu memorizei a cena. Que fui testemunha. E então vou explicar que é isso que escritores fazem quando não estão escrevendo.
Dykstra pensou em correr de volta para o Jag — sem fazer barulho! — e usar o telefone no painel para ligar para a polícia estadual. Bastava discar *99. Era o que diziam as placas de mais ou menos 15 em 15 quilômetros: EM CASO DE ACIDENTE, DISQUE *99 NO SEU CELULAR. Só que nunca havia um policial por perto quando você precisava. O mais próximo naquela noite estaria em Bradenton ou talvez Ybor City e, quando ele chegasse ali, aquele pequeno rodeio de sangue estaria acabado.
Então uma série de soluços pastosos, entremeados por sons baixos de sufocamento, começou a vir do banheiro feminino. A porta de uma das cabines bateu. A mulher sabia que Lee estava falando sério com tanta certeza quanto Dykstra. O simples fato de ela vomitar novamente bastaria para ele explodir. Ele partiria como um louco para cima dela e terminaria o serviço. E se eles o apanhassem? Segundo grau. Não premeditado. Em 15 meses ele poderia estar solto e saindo com a irmã mais nova dela.
Volte para o carro, John. Volte para o carro, sente atrás do volante e saia daqui. Comece a trabalhar na ideia de que isso nunca aconteceu. E certifique-se de não ler o jornal ou assistir à tevê pelos próximos dois dias. Vai ajudar. Faça isso. Agora. Você é um escritor, não um lutador. Você tem 1,80m, pesa 73,5 quilos, tem um ombro ruim e a única coisa que pode fazer aqui é piorar a situação. Então volte para o carro e faça uma pequena oração para qualquer Deus que exista olhar por mulheres como Ellen.
E ele chegou a dar meia-volta antes de um pensamento lhe vir à cabeça.
O Cão não era real, mas Rick Hardin era.
Ellen Whitlow, de Nokomis, tinha caído em cima de uma das privadas e aterrissado na tampa com as pernas abertas e a saia levantada, exatamente como a puta que era, e Lee foi andando atrás dela, pretendendo agarrá-la pelas orelhas e começar a socar sua cabeça idiota contra o azulejo. Já estava farto daquilo. Iria lhe ensinar uma lição que ela jamais esqueceria.
Não que esses pensamentos tenham passado pela sua cabeça de alguma forma coerente. O que havia em sua mente àquela altura era basicamente uma vermelhidão. Debaixo dela, por cima dela, infiltrando-se nela havia uma voz cantada que parecia a de Steven Tyler, do Aerosmith: Esse bebê não é meu mesmo, não é meu, não é meu, você não vai colocar ele nas minhas costas, sua puta de merda.
Ele deu três passos, e foi então que uma buzina de carro começou a soar ritmada em algum lugar ali perto, estragando o ritmo dele, estragando sua concentração, tirando-o de dentro da sua cabeça, fazendo-o olhar em volta: Uón! Uón! Uón! Uón!
Alarme de carro, pensou ele, olhando da entrada do banheiro feminino para a mulher sentada na privada. Da porta para a puta. Começou a cerrar os punhos de indecisão. De repente, apontou para ela com o indicador direito, a unha longa e suja.
— Se você se mexer, está morta, sua piranha — falou para ela, encaminhando-se para a porta.
O banheiro era bem iluminado e o estacionamento do posto também, mas no hall entre as duas alas do prédio estava escuro. Por um instante ele ficou cego, e foi então que algo o atingiu bem no alto das costas, impulsionando-o para a frente em uma corrida atabalhoada que o levou apenas dois passos adiante antes de ele tropeçar em alguma outra coisa — uma perna — e cair estatelado no concreto.
Não houve pausa, não houve hesitação. Uma bota lhe chutou a coxa, congelando o músculo grande dela, e então bem no alto da sua bunda de calça jeans, quase na base das suas costas. Ele começou a se arrastar...
Uma voz acima dele falou:
— Não role de barriga para cima, Lee. Estou com uma chave de roda nas mãos. Continue de barriga para baixo, ou eu vou afundar sua cabeça com ele.
Lee ficou deitado onde estava com as mãos estendidas para a frente, quase se tocando.
— Venha pra cá, Ellen — disse o homem que lhe batera. — Não temos tempo a perder. Saia daí agora.
Fez-se um silêncio. Então a voz da puta, trêmula e pastosa:
— Você machucou ele? Não machuque ele!
— Ele está bem, mas se você não sair agora mesmo, vou machucá-lo feio. Não vou ter escolha. — E, depois de uma pausa: — E a culpa vai ser sua.
Enquanto isso, o alarme do carro ressoava sua ladainha noite adentro: Uón! Uón! Uón! Uón!
Lee começou a virar a cabeça no chão. Doía. Com o que aquele desgraçado tinha batido nele? Foi chave de roda o que ele disse? Não conseguia lembrar.
A bota acertou sua bunda outra vez. Lee gritou e baixou o rosto de volta para o chão.
— Saia daí, moça, ou vou abrir a cabeça dele! Estou sem escolha aqui!
Quando ela falou de novo, estava mais perto. Sua voz vacilava, mas já pendia para a indignação:
— Por que você fez isso? Não precisava fazer isso!
— Eu liguei para a polícia do meu celular — falou o homem parado em cima dele. — Tinha um policial perto do quilômetro 200. Então nós temos dez minutos, talvez um pouco menos. Sr. Lee-Lee, é você ou ela quem está com a chave do carro?
Lee teve que pensar para responder.
— Ela — disse ele por fim. — Ela falou que eu estava bêbado demais pra dirigir.
— Está certo. Ellen, vá lá pra fora, pegue o PT Cruiser e saia daqui. Não pare até chegar a Lake City, e se você tiver nessa cabeça o cérebro que Deus deu a um pato, também não vai voltar quando chegar lá.
— Não vou deixar ele com você! — Agora ela soava bastante irritada. — Não com você carregando essa coisa na mão.
— Ah, vai sim. Vai agora mesmo ou então eu arrebento ele, e feio.
— Seu malvado!
O homem riu, e o som assustou mais Lee do que a voz falada do sujeito.
— Vou contar até trinta. Se você não estiver saindo do posto rumo ao sul até eu acabar, arranco a cabeça dele de cima dos ombros. Vou fazer de conta que ela é uma bola de golfe.
— Você não pode...
— Faça isso, Ellie. Faça isso, querida.
— Você ouviu — disse o homem. — Seu ursão de pelúcia quer que você vá. Se quiser deixá-lo acabar de te cobrir de porrada amanhã à noite, e o bebê também, pouco me importa. Não vou estar por perto amanhã à noite. Mas agora já acabei o que tinha que fazer com você; então coloque esse rabo pra andar, sua idiota.
Essa foi uma ordem que ela entendeu, dada em uma linguagem que ela conhecia, e Lee viu suas pernas nuas e sandálias cruzarem seu campo de visão rebaixado. O homem que o passara para trás começou a contar em voz alta:
— Um, dois, três, quatro...
— Rápido, porra! — gritou Lee, e a bota atingiu seu traseiro, mas de leve daquela vez, dando-lhe uma balançada em vez de um chute. Enquanto isso, Uón! Uón! Uón! noite adentro. — Coloque esse rabo pra andar!
Diante dessas palavras, suas sandálias começaram a correr. Sua sombra correu atrás delas. O homem tinha chegado a vinte quando o motorzinho de máquina de costura do PT Cruiser deu partida, e a trinta quando Lee viu seus faróis traseiros dando ré pelo estacionamento. Lee esperou que o homem começasse a bater e ficou aliviado quando ele não fez isso.
Em seguida, o PT Cruiser pôs-se a descer a pista de saída e o som do motor começou a desaparecer, e então o homem parado em cima dele falou com uma espécie de perplexidade.
— Agora — disse o homem que o passara para trás —, o que eu vou fazer com você?
— Não me machuque — disse Lee. — Não me machuque, moço.
Assim que os faróis traseiros sumiram de vista, Hardin trocou a chave de roda de mão. Suas palmas estavam suadas e ele quase o deixou cair. Isso teria sido ruim. A chave de roda teria feito um barulho alto ao bater no chão, e Lee se teria levantado num piscar de olhos. Ele não era tão grande quanto Dykstra imaginara, mas era perigoso. Já havia provado isso.
Sei, perigoso para mulheres grávidas.
Mas não era assim que devia pensar. Se o velho Lee-Lee se levantasse, aquele se tornaria um jogo totalmente diferente. Conseguia sentir Dykstra tentando voltar, querendo discutir essa e talvez outras questões. Hardin o afastou para longe. Aquela não era a hora ou o lugar para um professor universitário de Inglês.
— Agora, o que eu vou fazer com você? — disse ele, perguntando com uma perplexidade sincera.
— Não me machuque — falou o homem no chão. Ele usava óculos. Essa foi uma grande surpresa. Nem Hardin nem Dykstra tinham de maneira alguma visualizado aquele homem de óculos. — Não me machuque, moço.
— Já sei. — Dykstra teria dito Tive uma ideia. — Tire seus óculos e coloque-os do seu lado.
— Por que...
— Guarde a saliva e obedeça.
Lee, que usava uma Levi’s desbotada e uma camisa de botão (àquela altura puxada de dentro da calça atrás e pendendo sobre o seu traseiro), começou a tirar seus óculos de armação de metal com a mão direita.
— Não, com a outra mão.
— Por quê?
— Não me faça perguntas. Apenas obedeça. Tire os óculos com a mão esquerda.
Lee tirou os óculos estranhamente delicados e os colocou no chão. Hardin pisou neles na mesma hora com o salto de uma das botas. Ouviu-se um pequeno estalo e o estilhaçar delicioso de vidro.
— Por que você fez isso?
— Por que você acha? Está com uma arma ou coisa parecida?
— Não! Meu Deus, não!
E Hardin acreditava nele. Se tivesse, seria uma arma de caça no porta-malas do PT Cruiser. Mas achava que até isso era difícil. Parado diante do banheiro feminino, Dykstra havia imaginado um peão de obra enorme. Aquele cara parecia um contador que malhava três vezes por semana na academia.
— Acho que vou voltar para o meu carro agora — falou Hardin. — Desligar o alarme e dar o fora daqui.
— Sim. Sim, por que você não faz is...
Hardin voltou a colocar o pé sobre a bunda do homem num gesto de advertência, dessa vez balançando-o de um lado para outro de forma um pouco mais brusca.
— Por que você não cala a boca? O que achava que estava fazendo com ela lá dentro, afinal?
— Ensinando uma porra de uma lição para aque...
Hardin o chutou no quadril com quase toda a força que tinha, contendo-se um pouco no último segundo. Mas só um pouco. Lee gritou de dor e medo. Hardin ficou espantado com o que havia acabado de fazer e com a maneira como o fizera, totalmente sem pensar. O que o espantava mais ainda era o fato de querer fazer de novo, e com mais força. Gostou daquele grito de dor e medo, poderia ouvi-lo de novo sem problemas.
Então o quanto ele era diferente de Lee da Latrina, caído ali com a sombra do hall de entrada correndo pelas suas costas em uma diagonal negra como piche? Não muito, ao que parecia. Mas e daí? Aquela era uma pergunta chata, que dava pano demais pra manga. Outra muito mais interessante lhe veio à cabeça. O quão forte ele poderia chutar o velho Lee-Lee na orelha esquerda sem sacrificar a precisão em prol da força? Bem no meio da orelha, pá-pum. Ele também se perguntava que tipo de som aquilo faria. Seu palpite era de que seria um som satisfatório. É claro que ele poderia matar o homem ao fazer isso, mas qual seria a gravidade dessa perda para o mundo? E quem jamais saberia? Ellen? Grande bosta.
— É melhor calar a boca, companheiro — disse Hardin. — Essa seria a melhor maneira de agir no momento. Simplesmente calar a boca. E, quando o policial chegar aqui, você pode contar a ele qualquer merda que quiser.
— Por que você não vai embora? Vá embora e me deixe em paz. Já quebrou meus óculos, não está de bom tamanho?
— Não — falou Hardin com sinceridade. Ele pensou por um segundo. — Quer saber de uma coisa?
Lee não lhe perguntou o que era.
— Vou andar bem lentamente até o meu carro. Se quiser, levante e venha atrás de mim. A gente resolve isso cara a cara.
— Tá, sei! — Lee soltou uma risada lacrimosa. — Não consigo ver porra nenhuma sem meus óculos!
Hardin empurrou o seu para cima sobre o nariz. Não sentia mais vontade de mijar. Que coisa estranha!
— Olhe para você — disse ele. — Olhe só para você.
Lee deve ter escutado alguma coisa na sua voz, pois Hardin notou que ele começava a tremer sob o luar prateado. Porém, não disse nada, o que era provavelmente sensato diante das circunstâncias. E o homem parado em cima dele, que nunca tinha entrado em uma briga na vida antes disso, nem quando cursava o ensino médio, nem durante o fundamental, compreendeu que aquilo tinha de fato acabado. Se Lee tivesse uma arma, talvez tentasse acertá-lo pelas costas enquanto ele estivesse indo embora. Mas, caso contrário, não faria nada. Lee estava... qual era mesmo a palavra?
Subjugado.
O velho Lee-Lee estava subjugado.
Hardin teve um lampejo de inspiração.
— Anotei o número da sua placa — disse ele. — E sei o nome de vocês. O seu e o dela. Estarei de olho no jornal, seu babaca.
Nada vindo de Lee. Ele ficou apenas deitado de barriga para baixo, com seus óculos quebrados cintilando sob o luar.
— Boa noite, babaca — falou Hardin. Ele andou até o estacionamento e saiu guiando dali. Shane em um Jaguar.
Ele se sentiu bem por dez minutos, talvez 15. Tempo bastante para ver se tinha algo de interessante no rádio e então decidir colocar o disco da Lucinda Williams no CD player. Então, de repente, seu estômago estava na garganta, ainda cheio do frango com batatas que tinha comido no Pot o’ Gold.
Ele parou no acostamento, estacionou o Jaguar, começou a sair e então se deu conta de que não havia tempo para aquilo. Apenas se inclinou para fora com o cinto de segurança ainda preso e vomitou no asfalto ao lado da porta do motorista. Seus dentes batiam uns nos outros.
Faróis surgiram e deslizaram na direção dele. Eles desaceleraram. Dykstra primeiro achou que fosse um policial, finalmente um policial. Eles sempre apareciam quando você não precisava, quando não os queria. Seu segundo palpite — uma certeza fria, na verdade — era que se tratava do PT Cruiser, Ellen no volante, Lee-Lee no banco do carona, agora ele próprio com uma chave de roda no colo.
Porém era apenas um Dodge velho cheio de moleques. Um deles — um garoto com cara de idiota e provavelmente ruivo — botou o rosto cheio de espinhas, do tamanho de uma lua, para fora da janela e gritou:
— Vomita no péééé! — Isso foi seguido por gargalhadas, e o carro acelerou estrada afora.
Dykstra fechou a porta do motorista, recostou a cabeça, fechou os olhos e esperou a tremedeira diminuir. Depois de algum tempo, ela diminuiu e seu estômago sossegou. Ele percebeu que estava com vontade de mijar novamente e interpretou isso como um bom sinal.
Então pensou na vontade que teve de chutar Lee-Lee na orelha — com quanta força? que som faria? — e tentou forçar sua mente em outra direção. Pensar sobre como quis fazer aquilo o deixou enjoado de novo.
Sua mente (que em geral o obedecia) se voltou para o comandante daquela base de mísseis lá em Lonesome Crow, Dakota do Norte (ou talvez fosse em Dead Wolf, Montana). O que estava enlouquecendo em segredo. Vendo terroristas atrás de cada moita. Empilhando panfletos mal escritos no armário, passando madrugadas a fio diante da tela do computador, explorando os becos paranoicos da internet.
E talvez o Cão estivesse a caminho da Califórnia para fazer um serviço... de carro em vez de avião porque está com algumas armas especiais no porta-malas do seu Plymouth Road Runner... e então o carro enguiça...
Certo. Certo, aquilo era bom. Ou poderia ficar, se burilasse mais um pouco. E ele ainda tinha achado não haver lugar para o seu matador na imensidão vazia do coração da América. Mas isso era pensar pequeno, não é mesmo? Porque, dependendo da situação, qualquer um poderia acabar em qualquer lugar, fazendo qualquer coisa.
A tremedeira passou. Dykstra voltou a ligar o motor do Jag e pegou a estrada. Em Lake City, encontrou um posto de gasolina com loja de conveniência 24 horas e parou nele para esvaziar a bexiga e encher o tanque (depois de correr os olhos pelo posto e pelas quatro bombas de gasolina em busca do PT Cruiser e não vê-lo). Então dirigiu o resto do caminho, com seus pensamentos de Rick Hardin na cabeça, e entrou na sua casa de John Dykstra em frente ao canal. Ele sempre ligava o alarme contra ladrões antes de sair — era a coisa mais prudente a fazer —, e o desligou antes de acioná-lo novamente para o resto da noite.
 

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