A cidade inteira dorme -
O RELÓGIO DO TRIBUNAL soou sete vezes. Os ecos das badaladas enfraqueceram.
Crepúsculo quente de verão aqui no norte da zona rural de Illinois, nesta pequena cidade muito distante de tudo, cercada por rio e uma floresta e uma campina e um lago. As calçadas ainda fervendo. As lojas se fechando e as ruas sombreadas. E havia duas luas: a lua do relógio com quatro faces para os quatro cantos da noite, acima do tribunal negro e solene, e a lua de verdade se elevando no leste escuro, em sua brancura de baunilha.
Na botica, os ventiladores sussurravam no teto alto. À sombra rococó das varandas, sentavam-se, invisíveis, algumas pessoas. Ocasionalmente, o brilho rosado das pontas incandescentes dos charutos.
As portas de tela rangiam as molas e batiam. No calçamento purpúreo das ruas das noites de verão, corria Douglas Spaulding; cães e meninos seguiam-no.
“Oi, senhorita Lavinia.”
Os meninos se afastaram, trotando. Acenando calmamente para eles, Lavinia Nebbs estava sentada sozinha com um copo alto de limonada fria entre os dedos brancos, levando-o aos lábios, bebericando, esperando.
“Cheguei, Lavinia.”
Ela se virou e lá estava Francine, toda de branco-neve, ao pé da escada da varanda, cheirando a zínia e hibisco.
Lavinia Nebbs trancou a porta da frente e, deixando na varanda o copo de limonada meio vazio, disse:
“Está uma noite agradável para ir ao cinema”.
Elas desceram a rua.
“Onde estão indo, meninas?”, gritaram as senhoritas Fern e Roberta de sua varanda do outro lado da rua.
Lavinia respondeu através do oceano de escuridão:
“Ao Cine Elite, ver Charlie Chaplin”.
“Não sairíamos numa noite assim”, resmungou a senhorita Fern. “Não com o Solitário por aí, estrangulando mulheres. Preferimos nos trancar no guarda-roupa com uma arma.”
“Ah, que bobagem.”
Lavinia escutou a porta das velhas senhoras bater e trancar-se, e continuou a se afastar, sentindo o bafo quente da noite de verão em ondas tremulantes por sobre as calçadas tostadas. Era como andar sobre uma crosta dura de pão recém-assado. O calor pulsava sob os vestidos, ao longo das pernas, com uma sensação de invasão furtiva e não de todo desagradável.
“Lavinia, você não acredita no que dizem do Solitário, acredita?”
“Essas mulheres gostam de ver as próprias línguas dançando.”
“Mas Hattie McDollis foi morta dois meses atrás, Roberta Ferry um mês antes, e agora Elizabeth Ramsell desapareceu...”
“Hattie McDollis era uma doidivanas. Aposto que fugiu com algum viajante.”
“Mas as outras, todas elas, estranguladas, as línguas para fora da boca, dizem.”
Elas estavam de pé na beira da ravina que corta a cidade ao meio. Atrás delas, estavam as casas de luzes acesas e música; à frente havia profundeza, umidade, vaga-lumes e escuridão.
“Talvez não devêssemos ir ao cinema esta noite”, disse Francine. “O Solitário pode nos seguir e nos matar; eu não gosto dessa ravina. Olhe só, olhe!”
Lavinia olhou, e a ravina era um dínamo que nunca parava de funcionar, dia e noite; havia um grande zumbido incessante, um constante zunido e murmúrio de criaturas, insetos e vida vegetal. Cheirava a estufa, vapores secretos e areias movediças. E sempre o dínamo negro zumbindo, com fagulhas, como uma forte corrente elétrica, onde pirilampos se moviam no ar.
“Não serei eu voltando por esta velha ravina, tarde da noite, tão tarde assim; será você, Lavinia, você descendo as escadas e atravessando a ponte, e talvez o Solitário ali.”
“Bobagem!”, disse Lavinia Nebbs.
“Será você sozinha pelo caminho, escutando seus sapatos, não eu. Você totalmente só no caminho de volta para casa. Lavinia, não sente solidão morando naquela casa?”
“Solteironas adoram morar sozinhas.” Lavinia apontou para o caminho sombreado e quente que descia escuridão adentro. “Vamos pegar o atalho.”
“Estou com medo!”
“É cedo. O Solitário só sai mais tarde.”
Lavinia pegou a outra pelo braço e levou-a pelo caminho tortuoso para dentro da quentura de grilos e sons de sapos e silêncio delicado como mosquitos. Elas roçaram a grama chamuscada de verão, carrapichos arranhando seus calcanhares expostos.
“Vamos correr!”, ofegou Francine.
“Não!”
Elas viraram uma curva no caminho... e lá estava.
Na profunda noite murmurante, à sombra das árvores cálidas, como se tivesse se deitado ao ar livre para apreciar as pálidas estrelas e o vento brando, as mãos de cada lado como os remos de uma delicada embarcação, jazia Elizabeth Ramsell!
Francine gritou.
“Não grite!”, Lavinia estendeu as mãos para segurar Francine, que estava choramingando e engasgando. “Pare! Pare!”
A mulher estava deitada como se flutuasse ali, o rosto iluminado pela lua, os olhos arregalados e vidrados, a língua esticada para fora da boca.
“Ela está morta!”, disse Francine. “Ai, ela está morta, morta! Ela está morta!”
Lavinia estava no meio de milhares de sombras quentes, com os grilos estrilando e os sapos coaxando alto.
“É melhor chamar a polícia”, ela disse, finalmente.
***
“Me abrace, Lavinia, me abrace, estou com frio, ai, eu nunca senti tanto frio em toda a minha vida!”
Lavinia abraçou Francine, e os policiais abriam caminho pelo capim crepitante, fachos de lanternas se moviam em todas as direções, vozes se misturavam, e a noite avançava rumo às oito e meia.
“Parece dezembro. Preciso de um agasalho”, disse Francine, olhos fechados, agarrada a Lavinia.
O policial disse: “Acho que já podem ir, senhoras. Terão de passar na delegacia amanhã para responder a mais algumas perguntas”.
Lavinia e Francine se afastaram da polícia e do lençol sobre aquela coisa delicada em cima da grama da ravina.
Lavinia sentia o coração bater alto dentro do peito e também ela estava com frio, um frio de fevereiro; havia flocos de uma neve repentina por todo o seu corpo, e a lua branqueava ainda mais seus dedos enrijecidos, e ela se lembrou de ter conversado sozinha com os policiais, enquanto Francine não parava de soluçar agarrada a ela. Uma voz perguntou de longe:
“Querem que alguém as acompanhe, senhoras?”.
“Não, nós damos conta”, disse Lavinia a ninguém, e continuaram andando.
Passaram pela acariciante e murmurosa ravina, a ravina de sussurros e estalidos, o pequeno mundo da investigação diminuindo de tamanho atrás delas, com suas luzes e vozes.
“Nunca vi ninguém morto antes”, disse Francine.
Lavinia examinou o relógio como se estivesse a mil quilômetros de distância, em um braço e pulso impossivelmente distantes.
“São apenas oito e meia. Vamos pegar Helen e ir para o cinema.”
“O cinema!”, disse Francine abruptamente.
“É do que precisamos. Temos de esquecer isso. Se formos para casa agora, lembraremos. Não é bom lembrar. Vamos ao cinema como se nada tivesse acontecido.”
“Lavinia, você não fala sério!”
“Nunca falei tão sério em minha vida. Agora precisamos rir e esquecer.”
“Mas Elizabeth está lá atrás — sua amiga, minha amiga.”
“Não podemos ajudá-la; só podemos nos ajudar. Venha.”
Elas começaram a subir a encosta da ravina, pelo caminho de pedras, no escuro. E de repente, ali, barrando a passagem, muito imóvel, parado no mesmo lugar, sem vê-las, mas olhando para baixo, para as luzes em movimento e o corpo, e escutando as vozes dos policiais, estava Douglas Spaulding. Ele estava plantado ali, branco como um cogumelo, as mãos de lado, olhando fixo para o interior da ravina.
“Vá para casa!”, gritou Francine.
Ele não ouviu.
“Você aí!”, berrou Francine. “Vá para casa, saia daqui, ouviu? Vá para casa, vá para casa, vá para casa!”
Douglas virou bruscamente a cabeça, olhou para elas como se não estivessem ali. Sua boca se mexeu. Ele deu um gemido. Então, girou rapidamente e correu. Corria em silêncio, subindo as colinas distantes, penetrando a tépida escuridão.
Francine chorava e soluçava e, de novo, chorava e soluçava e, ao mesmo tempo, continuava a caminhar com Lavinia Nebbs.
***
“Aí estão vocês! Pensei que as senhoras nunca viriam!”, disse Helen Greer, batendo o pé no degrau da escada de sua varanda. “Vocês só estão uma hora atrasadas, só isso. O que aconteceu?”
“Nós...”, Francine começou.
Lavinia apertou com força o braço dela.
“Houve uma confusão. Alguém encontrou Elizabeth Ramsell na ravina.”
“Morta? Ela estava... morta?”
Lavinia assentiu. Helen ofegou e levou a mão à garganta.
“Quem a encontrou?”
Lavinia segurou firmemente o pulso de Francine.
“Não sabemos.”
As três jovens, ali, na noite de verão, entreolharam-se.
“Preciso ir para casa e trancar as portas”, disse Helen, finalmente.
Por fim, ela foi pegar uma blusa de frio, pois, embora ainda estivesse quente, também reclamou da súbita noite de inverno. Enquanto Helen estava ausente, Francine sussurrou freneticamente:
“Por que você não contou a ela?”.
“Para que afligi-la?”, disse Lavinia. “Amanhã. Amanhã haverá bastante tempo.”
As três mulheres caminharam pela rua sob as árvores escuras, passando por casas que eram subitamente trancadas. Com que rapidez a notícia havia se espalhado para fora da ravina, casa a casa, varanda a varanda, telefone a telefone. Agora, ao passar, as três mulheres sentiam que olhos as fitavam através das cortinas das janelas, enquanto trancas eram fechadas com estrépito. Que estranha a noite de sorvete no palito, a noite de baunilha, a noite de sorvete cremoso em potes, de pulsos untados de loção contra mosquitos, a noite de crianças correndo, agora repentinamente puxadas para longe de suas brincadeiras e isoladas atrás de vidros, atrás de madeira, os sorvetes derretendo-se em poças de lima e morango, caídos nos lugares de onde as crianças foram arrebatadas e levadas para dentro de casa. Estranhos os cômodos quentes com gente suada, muito apertada no fundo deles, atrás de maçanetas e aldravas de bronze. Tacos e bolas de beisebol jazem sobre gramados sem marcas de pés. O traçado a giz inacabado de um jogo de amarelinha sobre o chão quente e cozido da calçada. Era como se, instantes antes, alguém houvesse previsto frio glacial.
“Somos loucas de ficar fora de casa em uma noite assim”, disse Helen.
“O Solitário não irá matar três moças”, disse Lavinia. “Grupos dão segurança. E, além disso, é muito cedo. Os assassinatos sempre acontecem a intervalos de um mês.”
Uma sombra atravessou seus rostos aterrorizados. Um vulto assomou por detrás de uma árvore. Como se alguém tivesse desferido um golpe terrível sobre um órgão, com o punho, as três mulheres gritaram em três diferentes tons estridentes.
“Peguei vocês!”, uma voz retumbou.
O homem saltou na direção delas. Apareceu na claridade, rindo. Apoiou-se em uma árvore, apontando frouxamente para as moças, novamente rindo.
“Olhem! Sou o Solitário!”, disse Frank Dillon.
“Frank Dillon!”
“Frank!”
“Frank”, disse Lavinia, “se você fizer uma criancice dessas de novo, tomara que lhe encham de tiros!”
“Isso é coisa que se faça!”
Francine começou a rir histericamente.
Frank Dillon parou de sorrir.
“Me desculpem.”
“Vá embora!”, disse Lavinia. “Não soube de Elizabeth Ramsell — foi encontrada morta na ravina. E você andando por aí, assustando mulheres! Não fale mais com a gente.”
“Ah, então...”
Elas começaram a se afastar. Ele fez menção de segui-las.
“Fique bem aqui, senhor Solitário, e fique dando sustos em si mesmo. Vá dar uma olhada no rosto de Elizabeth Ramsell e veja se é engraçado. Boa noite!”
Lavinia levou as outras duas pela rua cheia de árvores e estrelas; Francine segurava um lenço contra o rosto.
“Francine, foi só uma brincadeira”, disse Helen, voltando-se para Lavinia. “Por que ela está chorando tanto?”
“Nós lhe contaremos quando chegarmos à cidade. Vamos ao cinema, não importa o que aconteça! Para mim chega! Venham já, peguem seu dinheiro, estamos quase lá!”
***
A botica era uma pequena poça de ar parado em que os grandes ventiladores de madeira movimentavam ondas olorosas de arnica e tônicos e refrigerante em direção às ruas calçadas de tijolos.
“Preciso de um tostão de balas de hortelã”, disse Lavinia ao boticário. O rosto dele era pálido, de feições duras, como todos os rostos que elas haviam visto nas ruas semivazias. “Para comermos no cinema”, disse Lavinia, enquanto o boticário pesava um tostão da guloseima verde, usando uma concha de prata.
“As senhoritas estão mesmo bonitas esta noite. A senhorita Lavinia parecia bem-disposta essa tarde, quando entrou para tomar um chocolate batido. Tão bem-disposta e simpática que alguém indagou sobre a senhora.”
“É?”
“Um homem sentado junto ao balcão... Observou-a sair e me perguntou: ‘Quem é aquela?’. Ora, aquela é Lavinia Nebbs, a moça solteira mais bonita da cidade, eu disse. ‘É linda’, ele disse. ‘Onde ela mora?’.”
Nesse momento, o boticário fez uma pausa, desconfortável.
“O senhor não fez isso!”, disse Francine. “O senhor não lhe deu o endereço dela, espero. Não deu!”
“Acho que não pensei direito. Eu disse: ‘Ah, lá em Park Street, sabe, perto da ravina’. Um comentário casual. Mas agora, à noite, depois que encontraram o corpo, segundo me contaram um minuto atrás, pensei: ‘Meu Deus, o que fiz!’”
Ele entregou o embrulho, cheio demais.
“Seu tolo!”, gritou Francine, e lágrimas encheram seus olhos.
“Desculpe. Mas talvez não seja nada.”
Lavinia estava ali com as três pessoas olhando para ela, olhando fixamente para ela. Não sentia nada. Exceto, talvez, um ligeiro formigamento de excitação na garganta. Ela entregou o dinheiro, automaticamente.
“As balas são de graça”, disse o boticário, virando-se para folhear alguns papéis.
“Bom, sei o que vou fazer neste mesmo instante!”, Helen saiu da botica a passos largos. “Vou chamar um táxi para nos levar para casa. Não farei parte de nenhum grupo de busca por você, Lavinia. Aquele homem não tinha boas intenções. Perguntando sobre você. Você quer ser a próxima a ser morta na ravina?”
“Era só um homem”, disse Lavinia, virando-se em um lento círculo para olhar a cidade.
“Frank Dillon também é um homem, mas talvez ele seja o Solitário.”
Notaram que Francine não havia saído da loja junto com elas e, ao se voltarem, viram-na chegando.
“Eu fiz com que ele me desse uma descrição... o boticário. Que ele me contasse como era o homem. Um estranho”, ela disse, “de terno escuro. Meio pálido e magro.”
“Estamos todas exaustas”, disse Lavinia. “Eu simplesmente não vou pegar um táxi se você conseguir um. Se sou a próxima vítima, assim seja. Há tão pouca excitação na vida, especialmente para uma mulher solteira de trinta e três anos, então não se importem se eu aproveitá-la. De qualquer forma, é tolice. Não sou bonita.”
“Ah, você é sim, Lavinia; você é a moça mais adorável da cidade, agora que Elizabeth está...” Francine parou. “Você mantém os homens à distância. Se pelo menos relaxasse, teria se casado alguns anos atrás!”
“Pare de choramingar, Francine! Chegamos à bilheteria, estou pagando quarenta e um centavos para ver Charlie Chaplin. Se vocês duas quiserem um táxi, vão em frente. Vou me sentar sozinha e voltar para casa sozinha.”
“Lavinia, você está louca; não podemos deixar que você faça isso.”
Elas entraram no cinema.
A primeira sessão tinha terminado, era hora do intervalo, e o auditório mal iluminado estava esparsamente ocupado. As três moças sentaram-se na fileira do meio, envolvidas pelo cheiro de polidor de metal antigo, e observaram o gerente passar através das gastas cortinas vermelhas para dar um aviso.
“A polícia nos pediu que fechássemos mais cedo esta noite, para que todos pudessem ir embora em um horário decente. Por isso, vamos deixar de mostrar os filmes curtos e exibir imediatamente o de longa-metragem. A sessão terminará às onze. Aconselhamos a todos irem direto para casa. Não se demorem nas ruas.”
“Isso quer dizer nós, Lavinia!”, cochichou Francine.
As luzes se apagaram. A tela saltou à vida.
“Lavinia”, sussurrou Helen.
“O quê?”
“Quando chegamos, um homem de terno escuro, do outro lado da rua, atravessou. Ele desceu pelo auditório e está sentado na fileira atrás de nós.”
“Ah, Helen!”
“Bem atrás de nós?”
Uma a uma, as três mulheres se voltaram para olhar.
Viram um rosto branco ali, tremeluzindo na claridade perversa da tela prateada. Parecia que os rostos de todos os homens flutuavam ali no escuro.
“Vou chamar o gerente!” Helen subiu pelo corredor. “Parem o filme! Acendam a luz!”
“Helen, volte aqui!”, gritou Lavinia, levantando-se.
***
Elas baixaram seus copos de refresco, cada uma exibindo um bigodinho de baunilha sobre o lábio superior, que, rindo, buscaram com as línguas.
“Vêem que tolice?”, disse Lavinia. “Todo esse alvoroço por nada. Que constrangedor.”
“Me desculpem”, disse Helen, com a voz sumida.
O relógio marcava onze e meia. Elas haviam saído do cinema escuro, para longe da onda agitada de homens e mulheres saindo apressados pela rua, rumo a toda parte, a parte alguma, enquanto riam-se de Helen. Helen estava tentando rir de si mesma.
“Helen, quando você subiu correndo aquele corredor, gritando: ‘Acendam as luzes!’, achei que eu ia morrer! Aquele pobre homem!”
“O irmão do gerente do cinema de Racine!”
“Eu me desculpei”, disse Helen, olhando para cima, para o grande ventilador ainda girando, girando o ar morno da noite alta, mexendo, remexendo os odores de baunilha, framboesa, hortelã e desinfetante bucal.
“Não devíamos ter parado para beber estes refrescos. A polícia aconselhou...”
“Ah, bobagem da polícia”, riu Lavinia. “Não tenho medo de nada. O Solitário está a quilômetros de distância agora. Ele não voltará durante semanas, e a polícia vai pegá-lo, esperem só. O filme não foi maravilhoso?”
“Estamos fechando, moças.” O boticário apagou as luzes no frio silêncio de azulejos brancos.
Lá fora, as ruas ficavam desertas, esvaziando-se de carros e caminhões e gente. Luzes brilhantes ainda incandesciam nas vitrines da pequena loja, onde mornos manequins levantavam mãos de cera rosadas, flamejando com anéis de diamante branco-azulados, ou pernas de cera alaranjadas e ornadas, revelando longas meias de seda. Os olhos de vidro azul dos manequins observaram as moças se afastarem, descendo a rua vazia, suas imagens tremeluzindo nas janelas como botões de flor vistos através de escuras águas correntes.
“Você acha que se gritarmos eles farão alguma coisa?”
“Quem?”
“Os manequins, as pessoas na vitrine.”
“Ah, Francine.”
“Ora...”
Havia mil pessoas nas vitrines, rígidas e silentes, e três pessoas na rua, os ecos seguindo-as como tiros vindos das fachadas das lojas, de um lado a outro do caminho, quando elas batiam os saltos no pavimento tostado.
Uma placa de neon vermelho luzia fracamente, zumbindo como um inseto moribundo, à passagem delas.
Ressequidas e brancas, as longas avenidas se estendiam à frente. Balouçantes e altas, sob um vento que tocava apenas suas copas frondosas, as árvores ladeavam as três pequenas mulheres. Vistas do alto do tribunal, elas pareciam três cardos bem ao longe.
“Primeiro, vamos levá-la até sua casa, Francine.”
“Não, eu levo vocês em casa.”
“Não seja boba. Você mora longe, em Electric Park. Se você me levasse até minha casa, teria de voltar sozinha pela ravina. E se uma simples folha caísse em você, você estaria morta.”
Francine disse:
“Posso passar a noite na sua casa. Você é que é a bonita!”
E então elas caminharam, afastaram-se como três vultos em roupas domingueiras por sobre um mar enluarado de gramado e concreto, Lavinia observando as árvores escuras que adejavam de um lado e de outro, ouvindo as vozes das amigas cochichando, tentando rir; e a noite parecia se apressar, elas pareciam correr, enquanto andavam devagar, tudo parecia apressado e com cor de neve quente.
“Vamos cantar”, disse Lavinia.
Elas cantavam:
“Brilha, brilha, lua cheia...”
Elas cantavam doce e tranqüilamente, de braços dados, sem olhar para trás. Sentiam a calçada quente arrefecendo sob seus pés, movendo-se, movendo-se.
“Escutem!”, disse Lavinia.
Elas escutaram a noite. Os grilos da noite de verão e o som distante do relógio do tribunal marcando onze e quarenta e cinco.
“Escutem!”
Lavinia escutou. Em uma das varandas, o balanço rangia no escuro e nele estava o sr. Terle, sem falar nada com ninguém, sozinho, fumando um último charuto. Elas viram a brasa rosada balouçando gentilmente para cá e para lá.
Agora as luzes estavam sumindo, sumindo, sumiram. As luzes das pequenas casas, as luzes das grandes casas e as luzes amarelas e as luzes verdes de alerta de furacão, as velas e lampiões a óleo e as luzes das varandas e tudo o mais foi trancado em latão, e ferro e aço, tudo, pensou Lavinia, está fechado e trancado e embrulhado e coberto. Ela imaginou as pessoas em suas camas iluminadas pelo luar. E a respiração delas nos quartos da noite de verão, seguras e juntinhas. E aqui estamos, Lavinia pensou, nossos passos ao longo da calçada ressequida da noite de verão. E acima de nós as lâmpadas da rua solitária despejando sua luz, lançando uma sombra bêbada.
“Chegamos, Francine. Boa noite.”
“Lavinia, Helen, fiquem aqui esta noite. É tarde, quase meia-noite agora. Vocês podem dormir na sala de estar. Vou fazer chocolate quente — vai ser bem divertido!” Francine abraçava fortemente as duas.
“Não, obrigada”, disse Lavinia.
E Francine começou a chorar.
“Ah, não de novo, Francine”, disse Lavinia.
“Eu não quero que você morra”, soluçou Francine, as lágrimas escorrendo pelo rosto. “Você é tão simpática e boa, eu a quero viva. Por favor, ah, por favor!”
“Francine, eu não sabia que isso havia afetado tanto você. Prometo que telefono quando chegar em casa.”
“Telefona mesmo?”
“E aviso que cheguei bem, sim. E amanhã faremos um piquenique em Electric Park. Com sanduíches de presunto que eu mesma farei, que tal? Você vai ver, vou viver para sempre!”
“Você telefona, então?”
“Prometi, não prometi?”
“Boa noite, boa noite!” Correndo escada acima, entrou depressa por uma porta, que bateu e foi trancada rapidamente na mesma hora.
“Agora”, disse Lavinia a Helen, “eu a levarei até sua casa.”
***
O relógio do tribunal bateu a hora. Os sons percorreram uma cidade que estava vazia, mais do que jamais estivera. Pelas ruas vazias e lotes vazios e gramados vazios, o som foi enfraquecendo.
“Nove, dez, onze, doze”, Lavinia contou, com Helen pelo braço.
“Você não se sente estranha?”, perguntou Helen.
“Como assim?”
“Quando penso na gente, fora de casa, aqui na calçada, debaixo das árvores, e em todas aquelas pessoas seguras, atrás de portas trancadas, deitadas em suas camas. Somos praticamente as únicas pessoas andando ao ar livre no raio de mil quilômetros, aposto.”
O som da ravina, cálida, profunda e escura se aproximava.
Em um minuto, elas estavam diante da casa de Helen, olhando uma para a outra durante um longo tempo. O vento soprava o cheiro da grama cortada por entre elas. A lua estava se afundando em um céu que começava a nublar.
“Acho que não vai adiantar muito pedir a você que fique, Lavinia.”
“Estou indo embora.”
“Algumas vezes...”
“Algumas vezes o quê?”
“Algumas vezes acho que as pessoas querem morrer. Você agiu estranhamente a noite toda.”
“Eu só não estou com medo”, disse Lavinia. “E estou curiosa, suponho. E estou usando a cabeça. Logicamente, o Solitário não deve estar por perto. A polícia e tudo o mais.”
“A polícia está em casa com as cobertas até as orelhas.”
“Digamos apenas que estou me divertindo, precariamente, mas com segurança. Se houvesse alguma chance verdadeira de algo me acontecer, eu ficaria aqui com você, pode ter certeza disso.”
“Talvez uma parte de você não queira mais viver.”
“Você e Francine. Francamente!”
“Eu me sinto tão culpada. Estarei tomando chocolate quente no momento em que você chegar ao fundo da ravina e caminhar rumo à ponte.”
“Beba uma xícara por mim. Boa noite.”
Lavinia Nebbs desceu sozinha a rua à meia-noite, atravessando o silêncio da noite alta de verão. Ela via casas com janelas escuras e, ao longe, ouvia um cão latindo. Em cinco minutos, ela pensava, estarei segura dentro de casa. Em cinco minutos, estarei telefonando para a bobinha da Francine. Estarei...
Ela ouviu a voz do homem.
A voz de um homem cantando ao longe, entre as árvores.
“Ó, dê-me uma noite de junho, o luar e você...”
Ela apressou um pouco mais o passo.
A voz cantava:
“Em meus braços... com todos os seus encantos...”
Descendo a rua, à fraca luz do luar, um homem caminhava lenta e casualmente.
Posso correr e bater em uma destas portas, pensou Lavinia, se precisar.
“Ó, dê-me uma noite de junho”, cantava o homem. Ele carregava um longo bastão em uma das mãos. “O luar e você. Ora, veja só quem está aqui! Que hora da noite para estar fora de casa, senhorita Nebbs!”
“Policial Kennedy!”
E então era ele, é claro.
“Acho melhor acompanhá-la até sua casa!”
“Não, obrigada. Eu consigo chegar lá.”
“Mas a senhorita mora do outro lado da ravina...”
Sim, ela pensou, mas não vou atravessar a ravina com homem nenhum, nem mesmo com um policial. Como vou saber que não é o Solitário?
“Não”, ela disse. “Vou me apressar.”
“Eu esperarei bem aqui”, ele disse. “Se a senhorita precisar de ajuda, dê um grito. As vozes chegam bem até aqui. Eu irei correndo.”
“Obrigada.”
Ela seguiu caminho, deixando-o sob uma lâmpada, cantarolando sozinho.
Aqui estou, ela pensou.
A ravina.
Ela estava prestes a dar o primeiro dos cento e treze passos para descer a ribanceira íngreme, atravessar sete metros de ponte e subir a ladeira que levava a Park Street. E apenas um lampião a iluminar. Daqui a três minutos, ela pensou, estarei enfiando a chave na porta de minha casa. Nada pode acontecer em apenas cento e oitenta segundos.
Começou a descer os longos degraus verde-escuros rumo ao fundo da ravina.
“Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez degraus”, contava, sussurrando.
Sentia que estava correndo, mas não estava correndo.
“Quinze, dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove, vinte degraus”, ela ofegava. “Um quinto do caminho!”, anunciou para si mesma.
A ravina era profunda, negra, negra! E o mundo ficava para trás, o mundo de gente em segurança na cama, as portas trancadas, a cidade, a botica, o cinema, as luzes, tudo se fora. Apenas a ravina existia e vivia, negra e imensa, ao redor dela.
“Não aconteceu nada, aconteceu? Não há ninguém por aqui, há? Vinte e quatro, vinte e cinco degraus. Lembra-se daquela velha história de fantasmas que vocês contavam umas às outras quando crianças?”
Ela ouvia os próprios sapatos nos degraus.
“A história sobre o homem moreno chegando a sua casa e você lá em cima, na cama. E agora ele está no primeiro degrau, subindo para seu quarto. E agora ele está no segundo degrau. E agora ele está no terceiro degrau e no quarto degrau e no quinto! Ah, como vocês costumavam rir e gritar com aquela história! E agora o pavoroso homem moreno está no décimo segundo degrau e está abrindo a porta de seu quarto e agora está de pé ao lado de sua cama. ‘PEGUEI VOCÊ!’”
Ela gritou. Era diferente de tudo que já ouvira, aquele grito. Nunca havia gritado tão alto assim na vida. Parou, ficou paralisada, agarrada ao corrimão de madeira. O coração explodia dentro dela. O som do coração batendo aterrorizado enchia o universo.
“Ali, ali!”, ela gritava para si. “Ao pé da escada. Um homem, sob a luz! Não, agora ele se foi! Ele estava esperando ali!”
Ela ficou escutando.
Silêncio.
A ponte estava deserta.
Nada, ela pensou, segurando o coração. Nada. Boba! Aquela história que contei para mim mesma. Que tolice. O que devo fazer?
As batidas de seu coração diminuíram.
Devo chamar o policial — ele me ouviu gritar?
Ela escutou. Nada. Nada.
Vou andar o resto do caminho. Aquela história boba.
Começou de novo, contando os passos.
“Trinta e cinco, trinta e seis, cuidado, não caia. Ah, como sou idiota. Trinta e sete passos, trinta e oito, e nove e quarenta, mais dois são quarenta e dois — quase metade do caminho.”
Imobilizou-se novamente.
“Espere”, disse a si mesma.
Deu um passo. Houve um eco.
Deu outro passo.
Outro eco. Mais um passo, apenas uma fração de instante depois.
“Alguém está me seguindo”, ela sussurrou para a ravina, para os grilos pretos e sapos verde-escuros escondidos e o córrego negro. “Há alguém nos degraus atrás de mim. Não ouso me virar.”
Mais um passo, mais um eco.
“Toda vez que dou um passo, dão outro.”
Um passo e um eco.
Com a voz sumida, ela perguntou à ravina:
“Policial Kennedy, é o senhor?”
Os grilos ficaram em silêncio.
Os grilos estavam escutando. A noite a estava escutando. Para variar, na noite de verão, os prados distantes e as árvores próximas entravam todos em animação suspensa; folha, moita, estrela e lâmina de grama cessaram seus tremores típicos e escutavam o coração de Lavinia Nebbs. E a mil quilômetros de distância, do outro lado de uma terra desolada, em uma estação ferroviária deserta, um único viajante, lendo um jornal apagado sob o bulbo exposto de uma lâmpada, talvez levante a cabeça, escute e pense: O que é isso? E decida: É só uma marmota, com certeza, batendo em um tronco oco. Mas era Lavinia Nebbs, era com toda a certeza o coração de Lavinia Nebbs.
Silêncio. Um silêncio de noite de verão que se estendia por mil quilômetros, que cobria a terra como um oceano branco e umbroso.
Mais depressa, mais depressa!
Ela descia os degraus.
Corra!
Ela escutou a música. De um jeito louco, de um jeito tolo, ela escutou a grande onda de música que a assaltava, e percebeu, enquanto corria, enquanto corria em pânico e terror, que alguma parte de sua mente estava dramatizando, tomando emprestada a trilha musical turbulenta de algum drama particular, e agora a música a apressava e empurrava, cada vez mais alta, mais rápida, mais rápida, despencando e correndo rumo ao coração da ravina.
“Só mais um pouco, ela rezava. Cento e oito, e nove, cento e dez degraus! O fundo! Agora, corra! Atravesse a ponte!”
Ela disse às próprias pernas o que fazer, seus braços, seu corpo, seu terror; avisou a todas as partes de si mesma neste momento branco e terrível; sobre as águas turbulentas do córrego, nas tábuas da ponte, ocas, trepidantes, oscilantes, flexíveis, quase vivas, ela correu, seguida pelos passos desordenados atrás, atrás dela, com a música a seguindo também, a música estridente e ininteligível.
“Ele está aí atrás, não se vire, não olhe, se você o vir, não conseguirá se mover, ficará muito assustada. Apenas corra, corra!”
Atravessou correndo a ponte.
“Ó, Deus, Deus, por favor, por favor, me deixe subir! Agora ladeira acima, agora entre as colinas, ó, Deus, está escuro e tudo está tão longe. Se eu gritar agora não adiantará; de qualquer modo, não consigo gritar. Aqui é o topo do caminho, aqui é a rua, ó, Deus, por favor, me deixe em segurança, se eu chegar em casa sã e salva, nunca mais saio sozinha; fui uma tola, eu admito, fui uma tola, não sabia o que era terror, mas, se o Senhor me deixar chegar em casa depois disso, nunca mais saio sem Helen ou Francine! Aqui é a rua. Atravesse a rua!”
Atravessou a rua e correu para a calçada.
“Ó, Deus, a varanda! Minha casa! Ó, Deus, por favor, me dê tempo de entrar e trancar a porta e eu estarei em segurança.”
E ali — coisa tola de reparar... por que será que ela reparou, instantaneamente, não há tempo, não há tempo... mas ali estava... de qualquer forma, ao passar correndo —, no balaústre da varanda, o copo de limonada pela metade que ela havia abandonado há muito tempo, um ano, meia noite atrás! O copo de limonada jazendo, calmamente, imperturbavelmente, ali sobre o balaústre... e...
Ela ouviu os próprios pés desajeitados pisarem a varanda e ouviu e sentiu as mãos investindo contra a fechadura e golpeando-a com a chave. Ouviu o próprio coração. Ouviu sua voz interior gritando.
A chave entrou.
“Destranque a porta, depressa, depressa!”
A porta se abriu.
“Agora, entre. Bata com força!”
Ela bateu a porta.
“Agora tranque, bloqueie, tranque!”, ela ofegava miseravelmente. “Tranque, tranque bem, bem!”
A porta foi bem trancada e aferrolhada.
A música parou. Ela voltou a escutar o próprio coração e seu som diminuindo até o silêncio.
“Em casa! Ah, Deus, salva e em casa! Salva, salva e salva dentro de casa!” Ela se escorou na porta. “Salva, salva. Escute. Nem um som. Salva, salva. Ah, graças a Deus, salva e em casa. Eu nunca mais saio à noite. Vou ficar em casa. Não atravessarei aquela ravina de novo, nunca mais. Salva, ah, salva, salva e em casa, tão bom, tão bom, salva! Segura aqui dentro, a porta trancada. Espere! Olhe pela janela.”
Ela olhou.
“Mas não há ninguém lá! Ninguém. Não havia ninguém me seguindo. Ninguém correndo atrás de mim.” Recuperou o fôlego e quase riu de si mesma. “É claro que se um homem estivesse me seguindo, ele teria me pegado! Não consigo correr muito... Não há ninguém na varanda, nem no quintal. Que bobagem. Eu estava fugindo à toa. Aquela ravina é tão segura quanto qualquer outro lugar. Não importa, é bom estar em casa. Nossa casa é de fato o lugar melhor e mais aconchegante, o único lugar onde estar.”
Ela estendeu a mão na direção do interruptor de luz e parou.
“O quê?”, ela perguntou. “O quê, o quê?”
Atrás dela, na sala de estar, alguém limpou a garganta.
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